ASSINE
search button

Previdência: o lado da receita

Compartilhar

O debate brasileiro sobre a reforma da Previdência sofre de vários desequilíbrios, alguns até escandalosos. Há quem diga que o debate é mais desequilibrado do que a própria Previdência. Um desses desequilíbrios me parece evidente: na cobertura do tema pela mídia tradicional, tudo se passa como se o problema fosse tão somente de excesso de despesa. O argumento, repetido ad nauseam, é simples: as pessoas vivem mais, a população envelhece. Aumenta, em consequência, o número de beneficiários de aposentadorias e pensões – em termos absolutos e relativamente ao número de contribuintes da previdência. Isso é verdade, não há dúvida, no Brasil e na maior parte do mundo. Mas é apenas parte da história.

Preciso, leitor, abrir rápido parêntese. Todo economista que se preze precisa fazer, volta e meia, homenagens sinceras e sentidas ao Conselheiro Acácio, um nosso renomado colega do século 19. O Conselheiro Acácio, para quem não sabe ou não lembra, é aquele personagem do Eça de Queiroz que, depois de escrever um volumoso “Tratado de economia política”, com o subtítulo “segundo os melhores autores”, adquiriu o hábito de enunciar o óbvio ululante em tom solene. Mas, por favor, não cabe fazer pouco do Conselheiro e seus discípulos. O óbvio, mesmo ululante, não está dispensando defensores. Ao contrário, nunca foi tão importante defendê-lo, com unhas e dentes.

Vamos lá, então. Como diria o Conselheiro, quando aparece um déficit em algum orçamento isso se deve, necessariamente, ao aumento da despesa, à diminuição da receita ou a uma combinação das duas coisas. No caso em tela, vale a terceira hipótese. Trato, hoje, apenas do lado da receita, que vem sendo varrido para baixo do tapete por muitos comentadores e analistas.

As falhas do lado da arrecadação têm várias dimensões, entre elas a evasão tributária, generosas isenções, a elevada dívida ativa e anistias fiscais recorrentes. Tomadas em conjunto, essas falhas constituem uma parte importante do problema financeiro da Previdência Social. Quem se beneficia delas, entretanto, é a famigerada turma da bufunfa, o que explica o relativo silêncio a respeito nas mídias tradicionais.

A evasão tributária em larga escala só é possível porque a administração pública brasileira sofre de deficiências crônicas, não conseguindo assegurar a estrita cobrança das contribuições previdenciárias previstas em lei. O problema é antigo e nunca foi realmente enfrentado. Os donos do poder têm interesse muito limitado em permitir que essas deficiências sejam sanadas.

As isenções de contribuições são concedidas sem critério, sem monitoramento e por prazo indeterminado, corroendo de forma significativa a arrecadação previdenciária. A Receita Federal estima que as isenções representam para a Previdência perdas de receita da ordem de R$ 50 a 60 bilhões por ano.

A dívida ativa da União relativa a créditos previdenciários alcança quase R$500 bilhões. É verdade que boa parte disso é incobrável, pois corresponde a obrigações de empresas falidas. Mesmo assim, uma cobrança mais efetiva da parte da dívida que pode ser recuperada ajudaria, sem dúvida, a enfrentar o problema da Previdência.

O problema das anistias frequentes e abusivas agravou-se consideravelmente nos últimos anos. Tornou-se rotina aprovar no Congresso parcelamentos de dívidas previdenciárias e outras com prazos excepcionalmente longos. Em muitos casos, perdoa-se parte da dívida, das multas ou dos juros. Isso constitui incentivo perverso para os contribuintes e contribui para derrubar a arrecadação. É que as empresas incorporam as anistias às suas expectativas e passam a incluí-las no seu “planejamento tributário”. Pior: segundo a Receita, pelo menos metade dos contribuintes que se beneficiam das anistias voltou a ficar inadimplente, seja de parcelas refinanciadas, seja de outras obrigações.

O governo propôs algumas medidas para fazer face a essas falhas do lado da receita. Mas as propostas são insuficientes e, em alguns casos, dão até a impressão de terem sido apresentadas “para inglês ver”.

O pano de fundo desse enfraquecimento crônico da arrecadação previdenciária é a estagnação da economia brasileira. Estamos há quatro décadas, desde os anos 80, com crescimento econômico pequeno ou nulo. O desemprego, a informalidade e o subemprego aumentaram de forma expressiva, reduzindo o número de contribuintes da Previdência. O enfraquecimento da economia leva, além disso, as empresas a recrudescer no esforço de sonegar e se financiar às expensas da Previdência.

Vale para a Previdência Social a velha máxima: o crescimento econômico não é solução para tudo, mas sem ele não há solução para nada.

* O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países.

E-mail: [email protected]

Twitter: @paulonbjr