Em tempos de “menino veste azul e menina veste rosa”, da exclusão da palavra “gênero” do novo dicionário do Itamaraty, e na iminência da nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal, é quase um alento saber que o direito de gays e lésbicas serem mães e pais é não apenas reconhecido e respeitado por muitos, mas tratado com a atenção devida por profissionais que realizam um tipo muito específico de trabalho científico: a reprodução assistida de casais ou pessoas que fogem ao padrão da tradicional família brasileira.
Segundo o IBGE, o número de casamentos homoafetivos aumentou 10% no último levantamento do instituto, feito em 2017, embora a quantidade absoluta ainda seja pequena. Dos 1.070.376 casamentos civis realizados em 2017, pouco mais de 5.800 foram entre pessoas do mesmo sexo. Aqui no Brasil, o casamento gay não é regulamentado por uma lei específica, porém uma resolução do Conselho Nacional de Justiça não permite que os cartórios se recusem a realizar casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo.
Fui me informar mais detalhadamente sobre o assunto após conhecer o livro Novas famílias, escrito pela médica Silvana Chedid, especialista em reprodução humana pelo Centro de Medicina Reprodutiva da Universidade Livre de Bruxelas. “Dedico este livro a todos os meus pacientes, homens e mulheres, que tiveram a coragem de enfrentar as adversidades para realizarem os seus sonhos de constituir uma família. Que sua coragem e determinação sirvam de exemplo para todos nós”. É com essas palavras que a autora abre a publicação que, logo na página seguinte, faz a inevitável menção a um dos principais problemas que os casais LGBT+ enfrentam quando decidem ter um ou mais filhos: “sem dúvida, a explicação para o número ainda pequeno de homossexuais que procuram tratamento para ter filhos está no preconceito que ainda grassa em nosso país contra tudo o que não é convencional”.
Silvana Chedid observa que o cenário começou a mudar na última década: “até uns dez anos atrás, a maioria dos pacientes que vinha realizar tratamentos de reprodução assistida era formada por casais inférteis heterossexuais. De dez anos para cá, esse perfil mudou, aumentando a procura de tratamentos por casais homoafetivos e mulheres solteiras. Em porcentagens eu diria que hoje atendo em média 50% de casais heterossexuais, 30% de mulheres solteiras e 20% de casais homoafetivos”. A especialista ressalta que o aumento da procura por casais homoafetivos é gradativo e se intensificou ainda mais nos últimos cinco anos. “Não vejo nenhuma resistência e enxergo pouco preconceito por parte da classe médica”, acrescenta. De acordo com o livro Novas famílias, os médicos que ainda abordam a questão de forma preconceituosa alimentam-se do mito de que “crianças criadas em lares atípicos tendem a apresentar desenvolvimento insatisfatório, problemas emocionais e dificuldades de socialização”. Porém, a publicação cita uma declaração publicada em 2002 pela Sociedade Americana de Psiquiatria sobre adoção e criação de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo em que afirma, em linhas gerais, “não haver qualquer evidência de que crianças criadas por gays e lésbicas sofram danos e/ou apresentem desvantagens em relação às demais por causa disso”.
O documento afirma, ainda, que pesquisas vêm mostrando “de forma consistente que o que garante o desenvolvimento adequado à criança não é a orientação sexual dos pais, mas o fato de terem vínculos fortes e estáveis com adultos generosos e comprometidos com elas”. Para isso, a autora salienta que a criação de uma rede de apoio à nova família é imprescindível tanto para a gestação quanto para o desenvolvimento da criança. “É muito importante que os filhos de mães ou pais homossexuais vivam cercados por pessoas que não apenas não sentem qualquer estranheza em relação à forma como sua família é constituída, como também partilham de seus momentos amorosos”, como, aliás, deve acontecer com qualquer criança, de qualquer tipo de família. Embora escrito por uma especialista, Novas famílias, antes de ser um livro técnico que esclarece questões médicas, jurídicas e científicas, é uma publicação sensível, que mexe com a emoção de qualquer pessoa que entenda a importância do acolhimento, da compreensão e da empatia.
* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP