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O Estado em Choque

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Em seu trajeto para Davos, o ministro Guedes fez uma escala na California. Sua Excelência atendia convite da sociedade Mount Pelerin para proferir palestra em jantar daquela organização. Convém recordar que Mount Pelerin é confraria dos economistas afinados com o neoliberalismo. Igrejinha. Com muita grana.

Desconheço o que lá disse nosso posto Ipiranga. Lembrei-me porém que Milton Friedman e o movimento neoliberal consideram como seu maior inimigo as teorias de John Maynard Keynes em defesa de um capitalismo menos selvagem, dotado de responsabilidade social. Keynes não comeria nem um pastel de vento com a patota do Mount Pelerin.

Guedes nunca escondeu seu desapreço por Keynes e nunca evitou criticar posturas social-democratas responsáveis pelo grande dinamismo das economias ocidentais no pós-guerra até os anos 70 do século passado, quando, capitaneada por Reagan nos Estados Unidos e Thatcher no Reino Unido, a economia mundial iniciou a virada ideológica do neoliberalismo.

Hoje vivemos num mundo em que a combinação de globalização e neoliberalismo oferece um panorama de crescente desigualdade social e déficit democrático. Autores de inegável importância, muitos deles honrados com o premio Nobel de Economia, acentuam os exageros e injustiças advindas com o neoliberalismo e condenam as falácias de Milton Friedman.

No Brasil o movimento neoliberal adquiriu nos últimos anos prestígio inabalável. Os exemplos de inquietação social na Europa, na América Latina e até mesmo nos Estados Unidos são desconsiderados por nossas autoridades. Nosso ministro da Economia nos promete a libertação dos grilhões do Estado e propõe a mais profunda reforma de nossa sociedade, em que os diversos instrumentos de amparo social são decepados como tumores malignos. O mercado a tudo regula e a tudo harmoniza, Friedman dixit.

Em Davos, Guedes exibiu canhestramente equívocos sobre o meio ambiente e sugeriu distribuição de “vales" para crianças frequentarem creches particulares. Olhada sem maiores cuidados, a idéia parece genial. Guedes segue a mesma linha de Milton Friedman, quando após as inundações de Nova Orleans, propôs a mesma coisa e em menos de um ano destruiu o sistema escolar gratuito, levou milhares de professores do serviço público ao desemprego e tornou o sistema escolar privado dependente de subsídios governamentais.

Naomi Klein em seu livro “A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo do desastre” nos recorda que Milton Friedman ensinava a seus discípulos que o melhor momento para se promover mudanças profundas no sistema econômico coincide com os de incerteza, catástrofes e crises num país. Friedman escolheu o Chile como laboratório para disseminar seu receituário. Após o golpe militar de Pinochet, Friedman e seus discípulos da escola de Chicago introduziram reformas neoliberais na economia chilena com as consequências hoje conhecidas pelas revoltas sociais a que assistimos nos jornais televisionados.

A melancólica conclusão salta aos olhos. O movimento neoliberal depende de um elemento catalizador para deslanchar. De forma democrática, as propostas neoliberais são rejeitadas por infringirem regras básicas de proteção social, muitas vezes de natureza constitucional. Em outras palavras, a instalação e permanência de sistemas econômicos de forte teor discricionário identificam-se ou proliferam em regimes autoritários como hoje vemos na Hungria, na Turquia e alhures.

Nesta moldura, a paisagem brasileira merece cuidadosa atenção. Seria ingênuo esconder de nós mesmos que há uma atmosfera preocupante sobre os rumos, os ventos e os palavrões que cavalgamos. Apesar das reiteradas manifestações de correntes políticas em apoio às reformas já feitas e a fazer para retomarmos um crescimento econômico saudável, o nível de desemprego ou de emprego intermitente ou precário mantem-se praticamente inamovível.

Os surtos e oscilações positivas do PIB brasileiro nos meses finais de 2019 são atribuíveis em boa parte às injeções do FGTS, sacrílegas para o fundamentalismo neoliberal. O crescimento de 1,7% do PIB permitiu absorver cerca de 600 mil desempregados. Como nosso estoque de mão de obra ociosa chega a dezena de milhões, deixo aos matemáticos calcular quantos anos levaríamos para absorver nossa mão de obra que até poucos anos atrás tinha carteira assinada e décimo terceiro.

As anomalias econômicas com que estamos convivendo começam a se deslocar dos segmentos mais pobres da população para os chamados estratos médios. Veja-se o caso dos juros: uma Selic de um dígito contra uma taxa de juros leonina tanto nos bancos quanto no cartão de crédito. Isto é usura aqui e na Veneza de Shylock. É deboche, é crime contra a economia popular. O argumento de que o diferencial se deve à taxa de inadimplência é mentiroso. O endividamento das famílias é insustentável.

O desarranjo estrutural que vemos na educação, na saúde, no meio ambiente e o desapreço com que se trata o cidadão em busca de sua aposentadoria legítima são fermento de explosões espontâneas. A política externa subserviente aos interesses políticos de Trump é prenhe de polaridades estranhas à nossa cultura e índole.

Finalmente, a concentração de poderes nas mãos de um czar da economia, reconhecidamente neoliberal e indiferente à pobreza e à miséria, capaz de permitir o atraso inédito do Bolsa Família, tudo isso conspira contra a paz social e contra a democracia. Ou, melhor, estimula a crise e o pandemônio de revoltas populares sabotadas por agentes a serviço da dominação nelas infiltrados. Às vezes até em nome de Deus.

Mais do que nunca, a sociedade brasileira através de suas universidades, centro de estudos e pesquisas deve munir-se de estudos e alternativas que esclareçam aos não comprometidos com o caos que há saídas compatíveis com nossa Constituição e com nosso legitimo direito de não vermos nosso solo coberto de sangue. E sobretudo que se de transparência às consequências de uma privatização absoluta de empresas estatais, de uma reforma tributária regressiva e de uma reforma administrativa restritiva do poder público.

As insinuações de que os “politicos" desidratam as reformas econômicas devem ser vistas como são: mensagens não crípticas de que o ritual democrático atrapalha o bom funcionamento do mercado. De tijolo em tijolo se vai construindo o muro da discórdia e do conformismo ao autoritarismo. É tão simplório e gasto que parece deboche da inteligência do povo. Mas, há, como sempre, interesses financeiros em jogo.

É hora da razão. O elemento único que nos distingue e nos protege quando fanatismo e cobiça nos parecem invencíveis. É imprescindível que afortunados como nós, que tivemos a rara felicidade de completar estudos e depois ainda aprofundá-los, e sobrevivido a caçadas e cassações, cumpramos pelo menos o dever cívico de chamarmos imposturas por seu nome e sobrenome.

Sem esquecer, é claro, o voto. Instrumento que nos liberta ou nos escraviza.

* Embaixador aposentado