2020 chega a seu último mês no passo fúnebre e funesto, no terror de uma pandemia renitente. Desgraça insuspeitada a fazer deste início de século um teatro de horrores políticos, sociais, econômicos associado a um recrudescimento da tragédia coletiva de destruição cotidiana do planeta, como se a raça humana estivesse possuída pelos demônios de sua alma. Ano terrível.
Trump, o bárbaro, ruge enfurecido em sua jaula branca e ensaia jogadas mirabolantes e genocidas em busca de uma tábua de salvação para voltar ao proscênio. Pretende fazer comícios públicos em seu grande país abatido pelo vírus, humilhado pela mortandade de seu povo, parida pelo negacionismo beócio de um narcisista patológico.
Nada poderá impedi-lo de ir às últimas consequências em sua tentativa de reverter a sentença inapelável do juízo eleitoral a apontar-lhe a porta de saída. E Trump sairá. Deixará impregnada na história dos Estados Unidos uma página sulfúrica a ser inevitavelmente lembrada como consequência de uma política de ódio, segregação e empáfia.
No Brasil, por motivos semelhantes, mas não totalmente idênticos, estamos nos aproximando de 180 mil mortos pela Pandemia. Aqui como na Trumpelândia nos deixamos levar pelo cântico da demagogia e pela incúria salpicada de alvar ignorância científica a resultar no mais amplo e profundo abismo entre brasileiros de que se tem notícia em tempos vividos ou sabidos. Estamos todos cansados. Estamos mortos de cansaço diante de reiteradas incursões num mundo de uma ideologia desumana e mequetrefe, de uma economia a julgar-se moderna, mas a nos levar ao retrocesso civilizacional, à miséria galopante, à selvageria nas relações humanas e ao culto da mentira, do logro e da hipocrisia como moeda de troca para justas aspirações de uma sociedade, única destinatária do bem comum.
Aqui como na Trumpelópolis, as urnas foram eloquentes em manifestar de forma pacífica porém contundente que a cidadania brasileira não se confunde com boiada a se ir tocando cinicamente, como se o país fosse um celeiro de toupeiras e a sociedade uma colmeia de mentecaptos. As urnas falaram. Alto. Eletronicamente, vencendo ameaças de tumultos digitais, canhestramente articulados. E a mensagem não poderia ser mais lúcida, mais incisiva que bisturi a laser a separar o tumor do corpo sadio.
Ainda temos a cumprir um rito de passagem. Temos um compromisso com a Constituição a nos impor mais uma quadra de tolerância. Mais uma caminhada por rotas pedregosas, mais uma temporada de distorções de verdades, mais uma tentativa de nos puxar como canga e de nos iludir com perspectivas infundadas de um futuro menos injusto numa sociedade desigual.
Articula-se - como se nada houvesse ocorrido nas eleições municipais - nos porões habituais da baixa política a retomada de propostas de reformas pseudoestruturantes, cujas raízes se confundem com a monstruosa emenda constitucional dita do “teto de gastos”. E através delas e em nome de uma austeridade fiscal genocida, prosseguir na mais injusta, antidemocrática e anticonstitucional política econômica-social de que se tem notícia fora dos regimes totalitários de esquerda ou direita, vale dizer, de Stalin ou de Mussolini.
Na mais abjeta forma de negacionismo da realidade e dos direitos humanos, tenta-se mascarar (com perdão pela ironia involuntária) a continuada marcha ceifadora da pandemia e se aponta para inegáveis soluços da macroeconomia como se já tivéssemos vencido a recessão e serem desnecessárias medidas emergenciais, únicas responsáveis pelo breve aumento da renda popular.
Diante do aparecimento de vacinas salvadoras da peste, nossas autoridades sanitárias tergiversam, expõem um preocupante despreparo com uma logística de que já fomos legitimamente orgulhosos. Pior: infecta-se a vacina com o vírus da ideologia e com a infâmia do descaso, estrada a nos levar a uma tragédia social de proporções impensáveis.
A única alternativa é nossa cidadania. Mais do que nunca a sociedade brasileira se encontra diante de desafio de vida ou morte. Apenas a voz criativa da cidadania, apenas a oposição mais cotidiana diante do embuste, nos levará a melhor destino.
Apenas a reafirmação de nossos direitos humanos e sociais inscritos na Constituição de 1988 é nossa alternativa. E nossa bandeira.
*Embaixador aposentado