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O pulo do canário

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Vivemos entre animais. Mais de um bilhão de pets urbanos esparramados nas camas, nadando em aquários nos centros das salas. A calopsita roça o penacho no ombro humano enquanto o felino, debaixo da mesa, a observa como quem não quer nada.

Acho bonito essa coisa de ter animais em casa, dar comida, dividir o sofá. Levar ao veterinário cada vez que o bicho engole um tufo do edredom, aquele que sua tia avó rica trouxe do exterior na década de 80 e estava no fundo do guarda-roupas. Você gasta os tubos com um exame de ultrassom e descobre que a memória afetiva da bondosa senhora virou um bolo de espuma no estômago do amigo. A conta do afeto: dois mil, com sorte, sem contar a roupinha do pós-operatório que não dura uma hora no corpo de quatro patas.

Outro dia, escutei algo semelhante a um urro na casa ao lado. Me perguntei se o vizinho havia batido as botas e fui à rua avisar o vigia. É o papagaio, disse o guarda. O fulano às vezes conversa com ele. Imaginei sobre o que conversariam e de quem seria o grunhido, som de um javali indo para o abate. Pensei em acionar a delegacia de proteção animal, temi pela ave. Ou talvez fosse o caso de ligar para o departamento de psiquiatria do SUS. Aliás, psiquiatria e veterinária são as profissões do futuro.

Não me lembro da última vez que fui ao médico para uma consulta de rotina. Devo ter ido a um pediatra. Mas semana passada tive de levar o cachorro ao veterinário. Pelo telefone, o doutor teria vaga só em 2021, me respondeu a atendente com uma naturalidade espantosa. Quem sabe, até lá a vacina contra a Covid-19 já esteja disponível. Faz um pacote aí, doutor! Uma antirrábica e uma pra Covid. Aliás, vê duas contra raiva, porque do jeito que está só assim mesmo. Aproveitarei a consulta para pedir uma receita de tarja preta.

Para o cão, que fique claro. E um psicotrópico, só por garantia. Explicarei que ando vendo jacarés no teto.
Bem, a história reptiliana não é de todo falsa. Lá por abril, uma pequena lagartixa me fazia companhia nas noites de insônia. Observá-la caçar os pobres mosquitos era um sonífero. Me afeiçoei a ela. Quase oito meses depois, três dragões-de-komodo vagam pelo quarto e ocupam meus pesadelos. Não, não estou louco. Prova da minha sanidade mental é o cachorro que late para a parede. Em abril, um latido de caça. Agora, o bicho não se mostra tão corajoso. Doutor, aumenta a dose do ansiolítico. E uma receita extra para o cão.

A nova organização social está aí. Trouxemos os animais para nossas casas, já fazem parte da fauna urbana. No mundo, gasta-se mais de 100 bilhões de dólares em produtos e serviços para pets. Foi o que li outro dia numa revista. A foto da reportagem mostrava um executivo de terno e gravata sorrindo, dava pra ver até seus dentes do siso. Atrás dele, uma prateleira lotada de caixas de alpiste.

Esse novo modelo de sociedade exige alguma adaptação e estudo. À humanidade, suposta parte racional da história, pipocam artigos sobre comportamento dos animais. É só dar um Google e temos acesso às profundezas da alma de um canário. E vamos torcer para os pássaros não aprenderem o alfabeto. Se ao folhear os livros descobrirem algo sobre a razão do sapiens, estamos perdidos. Num futuro não tão distante, nossas casas serão gaiolas, comeremos ração humana e o canário posará, todo pomposo, nas telas de tevê. Atrás de si, uma prateleira recheada de arminhas de borracha. Brinquedo importado, zero de imposto.

Publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.