Entidades criticam 'regalias' a parlamentares na PL das Fake News: 'Parece uma autorização para mentir'

Texto prevê imunidade a deputados e senadores; especialistas também se preocupam com a 'imunidade religiosa' e com a exclusão de um órgão regulador

Por GABRIEL MANSUR

Deputados Jilmar Tatto (PT -SP) e Odair Cunha (PT-MG)

O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do Projeto de Lei 2.360, conhecido popularmente como PL das Fake News, entregou o texto modificado à Câmara dos Deputados na quinta-feira passada (27). A atual versão da matéria, que mantém a prerrogativa da imunidade parlamentar e retira a criação de um órgão fiscalizador da atuação das plataformas, um dos pontos de maior crítica da oposição e das chamadas big techs, gerou controvérsias.

A desobrigação legislativa, aliás, é o principal desserviço, na opinião das mais de 100 organizações da sociedade civil e entidades acadêmicas que integram a Sala de Articulação contra a Desinformação (SAD). Por exemplo: a coordenadora executiva do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social - , Ramênia Vieira, afirmou que a salvaguarda de imunidade cria uma categoria de usuários acima do restante da população.

"A gente já percebeu que, dentro da Câmara dos Deputados, está bem difícil debater essa questão. Parece uma autorização para que os parlamentares, que são grandes propagadores de desinformação, continuem usando suas redes para distribuir essa desinformação”, observou.

 

Desinformação religiosa

Ramênia também chama atenção para um outro ponto que, de acordo com o Intervozes, causa preocupação: a possibilidade de se criar uma espécie de “imunidade religiosa”. Algo que, segundo ela, tem como origem a recente “campanha de desinformação” que explorou o monopólio das redes sociais para espalhar a falsa notícia de que trechos da Bíblia seriam proibidos nas redes sociais.

A falácia foi reverberada em massa por deputados das bancadas evangélica e lavajatista. O ex-procurador e atual deputado pelo Podemos do Paraná, Deltan Dallagnol, declarou que a “fé será censurada” caso o PL seja aprovado; e argumentou que “alguns versículos bíblicos serão banidos das redes sociais”. Antes de serem excluídas por campanha desinformativa, as postagens, feitas pelo Facebook e Instagram, contabilizaram mais de 61 mil reações e 800 compartilhamentos.

“A gente vê essa imunidade religiosa com preocupação, porque poderá ser usada para justificar discursos religiosos em ataques a comunidades LGBTQIA+, religiões de matrizes africanas e contra o movimento negro, entre tantos outros grupos, como já vemos nas redes sociais”, explicou Vieira. Em seu artigo 1º, o projeto garante a livre manifestação religiosa, dentre outras formas de manifestação, como artística e política.

 

Órgão regulador

Outro ponto debatido diz respeito à desobrigatoriedade de criar um órgão regulador autônomo. O Intervozes se posiciona a favor de “um mecanismo de regulação; uma entidade reguladora que seja autônoma, e que ela seja criada exatamente com esse objetivo”. A ideia é que esse órgão atue como uma entidade com “formação técnica e cuidado para ser realmente efetivador dos direitos digitais”.

A coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, Maria Mello, pontuou ainda que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), hoje a única agência reguladora dos meios digitais no Brasil, "não tem essa expertise para regulação da internet e deve ser excluída completamente deste papel”, acrescentou.

A avaliação de que a Anatel não deve exercer esse papel de órgão regulador é corroborada pela Coalizão Direitos na Rede, entidade que também integra a SAD. Segundo a integrante da Coalizão – e presidente do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – , Raquel Saraiva, a Anatel tem “falhado recorrentemente” no cumprimento de suas atribuições no setor de telecomunicações.

“Atribuir a regulação das plataformas a essa agência poderá agravar o cenário, prejudicando o avanço da conectividade significativa no Brasil, e levando os interesses econômicos das plataformas e empresas de telecomunicações a prevalecerem sobre os interesses dos usuários”, complementou.

O trecho era considerado um dos pontos “problemáticos” do texto e, por esse motivo, acabou retirado pelo relator, após conversa com lideranças partidárias e com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Técnicos do Legislativo dizem agora que a alteração acabou criando outro problema. Deixando em aberto quem será o responsável pela fiscalização, Orlando Silva estaria dando um “cheque em branco” ao presidente da República.

 

Votação na terça-feira

O PL das Fake News cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), ainda em 2020. A gestão do então presidente Jair Bolsonaro (PL), porém, era crítica ao texto e travou sua tramitação.

Na última terça-feira, a Câmara aprovou o regime de urgência do texto, com 238 votos a favor e 192 contrários. Agora, vai à votação em plenário na próxima terça-feira (2). Até lá, as negociações em torno da proposta que vai a voto continuam, e o relator não descarta a apresentação de um novo texto, com outras mudanças.

Para ser aprovado na próxima semana, o texto precisa de maioria simples, desde que confirmado o quórum mínimo de 257 deputados em plenário. A aprovação se dá por metade mais um dos votos dos parlamentares que registrarem presença na sessão.