
O Programa de Aceleração do Crescimento nas Favelas (PAC-Favelas) no Rio de Janeiro surgiu de forma diferente do que ocorreu em outros 21 estados da federação. Embalado pelos megaeventos futebolístico e olímpico, em 2014 e 2016, respectivamente, o PAC na capital parecia querer simbolizar a incorporação de comunidades à cidade dita formal com obras espetaculosas de infraestrutura. A dissimulada e estrondosa meta baixou seu espírito nos PACs do Alemão, de Manguinhos e da Rocinha. Toda essa expressão da presença do Estado nesses extensos territórios foi traduzida pelo acordo de leniência, em que o grupo OAS expõe os arranjos para defraudar licitações com outras empreiteiras. Autor de tese de mestrado sobre o tema, o arquiteto e urbanista Nuno André Patrício diz que documento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) expõe que o objetivo do cartel, que agiu com o governo do estado, não era só dividir os polpudos recursos das intervenções nesses três lugares (R$ 1.941.033.837, 59% do total destinado pelo programa ao estado), mas garantir sua vitória nas licitações, induzindo a conclusão de que só os três consórcios seriam habilitados a executar as obras. Daí por que apareceram em cenários tão precários ideias como a de um teleférico que servisse parte do conjunto de favelas do Alemão, a elevação da linha férrea em Manguinhos e a passarela com a assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer na Rocinha. O que o arquiteto estudou em sua dissertação de mestrado, no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foram os impactos desse arranjo nos territórios, deixando de lado ações prioritárias às populações.



Não por acaso, o teleférico obteve 26% (R$ 254.599.507,46) dos recursos do PAC do Alemão, enquanto as novas habitações se limitaram a 14%. Ao todo, foram gastos no lugar R$ 972.080.536. Morador do Alemão, Davi Amen, integrante da ONG Raízes em Movimento, lembra que o teleférico sequer está funcionando. “As melhorias habitacionais e o saneamento básico [foram investidos R$ 157.114.211,48, 16% da verba] foram relegados a segundo plano. E vários acessos deveriam ser alargados. A Rua Laurinda, que liga a Rua Paranhos à Avenida Central, era, no projeto inicial, para dar acesso a transporte. Hoje, só passa carro em parte dela. O resto é uma grande escadaria. Pior, o teleférico serve apenas a cinco favelas do Alemão. Outras, como Mineiros, Lagoinha, Pedra do Sapo, foram abandonadas. Obras em torno do teleférico. ou em vias para chegar aos pilares entre uma estação e outra, é que eram importantes para o PAC”, descreve Amen.
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Saneamento básico foi preterido
O PAC-Favelas surgiu nacionalmente e no Rio de Janeiro em 2007. O volume de recursos destinados para as favelas foi algo sem precedentes. No Rio, ao todo, foram investidos R$ 3,3 bilhões. Diferentemente do Programa Favela-Bairro, em que houve financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), se trata de um recurso não oneroso, como observa o arquiteto Nuno André Patrício: “No Favela-Bairro era empréstimo do BID; no PAC, era investimento direto da União”. No PAC de Manguinhos, foram investidos, ao todo, R$ 691.703.151. À semelhança do que ocorreu no Alemão, uma obra faraônica roubou a cena de uma política pública que acabou ficando em xeque justamente pela opção por um urbanismo espetaculoso, no qual o governo do estado se subordinou às empreiteiras. O consórcio em Manguinhos foi formado pela Andrade Gutierrez, Camter e EIT. A obra mais complexa dele foi a elevação da linha férrea na Avenida Leopoldo Bulhões. O custo da intervenção: R$ 132.545.488,97 (19% do total investido na favela). Para Nuno Andre Patricio, a elevação da linha férrea, que foi justificada como um elemento de integração entre as favelas ali, não contou com estudos técnicos que embasassem sua viabilidade. “Tanto que ela teve um sobrecusto muito grande, por conta da falta de estudos geotécnicos. O PAC de Manguinhos tinha como prioridade o saneamento básico, e ele acabou não sendo solucionado”, diz ele. Pesquisadora do PAC de Manguinhos, Claudia Trindade lembra que o Ministério da Cidade questionou os gastos com a elevação da linha férrea em 2008, já que, como escreveu em sua tese de doutorado, “as obras de Manguinhos estavam vinculadas à rubrica de saneamento integrado”, que inclui abastecimento, esgotamento sanitário e drenagem, e contou com apenas 8,7% dos recursos, R$ 59.924.472,70. “A elevação da linha férrea consumiu a maior quantidade de recursos, em detrimento do que era fundamental: o saneamento. A população dizia isso nos encontros com o poder público, mas isso não foi levado em conta”, diz Cláudia Trindade.
Sobre a Rocinha, o arquiteto Patrício diz que, dos R$ 277.250.150 investidos, R$ 15 milhões (5,4% do total) foram para a passarela que liga a comunidade ao centro esportivo, que tem a assinatura do renomado Oscar Niemeyer. Com o consórcio integrado pela Queiroz Galvão, Carioca e Caenge, as intervenções ali também deixaram o saneamento básico de lado, que recebeu apenas R$ 5.281.805,15, 1,9% do montante. O morador José Martins diz que o valão principal de lá — ou seja, o mais poluído — está do mesmo jeito depois que as obras do PAC foram paralisadas. “Existia já uma passarela, que foi fruto de uma luta e de uma reivindicação da Rocinha. Ela foi destruída para dar lugar à do Niemeyer e para gastar mais recursos”, disse Martins, que faz uma ironia ao dizer por onde passa um dos trechos do valão principal a enfatizar o descaso com o saneamento: “Justamente embaixo da passarela”.
Amanhã: sem obras espetaculosas, PAC do Preventório salvou vidas em Niterói, nas enxurradas de abril de 2010