Entre amanhã e quinta-feira, o colegiado de decisão máxima do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) vai se debruçar sobre o tombamento do Acervo Arthur Bispo do Rosário, genial artista que passou a maior parte de sua vida internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, na Zona Norte, sob o diagnóstico de esquizofrenia paranoide. As 805 peças do sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) — cujo maior destaque é o “Manto da Apresentação” — já haviam sido tombadas, em 1994, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). “Por ser frágil, com muitos tecidos e materiais catados na colônia, o ideal seria, além de tombar, que fossem destinados recursos para a manutenção deste precioso patrimônio”, observa a escritora Luciana Hidalgo, que em 1997 ganhou o Prêmio Jabuti por seu livro “Arthur Bispo do Rosário, o senhor do labirinto” (Rocco).
Até 1981, a Colônia Juliano Moreira, isolada por sua própria localização — recentemente cobiçada por milicianos, como denunciou o JORNAL DO BRASIL — foi mantida totalmente à parte da sociedade, obscurantismo quebrado por uma reportagem no “Fantástico”, da Rede Globo, naquele ano. Pouco depois, o psiquiatra e fotógrafo Hugo Denizart, já falecido, foi convidado pelo Ministério da Saúde para produzir um levantamento no local, que começava a se abrir para o mundo. “Ele foi a primeira pessoa a conhecer o Bispo do Rosário”, lembra Luciana, contato que o encontro deu origem ao documentário “O prisioneiro da passagem”. Denizart convidou então o crítico de arte Frederico Morais, que ficou estupefato com a obra encontrada na colônia, comparada por ele à do francês Marcel Duchamp, ligado ao dadaísmo e introdutor o conceito dos ready made como objetos de arte. “Frederico chegou a oferecer a ele um ateliê no Museu de Arte Moderna, mas Bispo tinha um discurso místico, não havia como inseri-lo na lógica do mercado”, conta a escritora.
Bispo produziu uma obra tão vasta que conquistou um farto espaço, no salão da colônia e em dez salas originalmente destinadas aos internos. Só que Rosário não saía de lá e tampouco deixava que suas obras saíssem. “Só depois da morte de Bispo, Frederico conseguiu fazer a primeira grande exposição, em setembro de 1989, no Parque Lage, do acervo composto por matérias-primas como vidro, madeira, plástico, tecidos, linhas, botões, gesso e do material que ele recolhia do lixo e da sucata da Colônia Juliano Moreira”, relata Luciana. Entre as peças destacam-se ainda faixas de misses e fardões, que chamam a atenção pela maestria do artista no uso da agulha e linha. Os bordados têm temáticas variadas, entre elas, os navios, figuras recorrentes devido à sua relação com a Marinha na juventude.
Histórico
Nascido em Japaratuba, no interior de Sergipe, Arthur Bispo do Rosário, que foi boxeador e biscateiro, ingressou na Marinha em 1925. Trabalhou no Departamento de Tração de Bondes no Rio de Janeiro, entre 1933 e 1937, e como empregado doméstico do advogado Humberto Magalhães Leoni, em Botafogo, na Zona Sul do Rio. Pouco antes do Natal de 1938, Bispo do Rosário ouviu vozes que o guiaram à Igreja da Candelária e ao Morro de São Bento. Segundo seu próprio relato, as vozes diziam que ele era um enviado do Todo-Poderoso, responsável por julgar os vivos e os mortos, chamado para cumprir uma missão: “Vozes me dizem para me trancar em um quarto e começar a reconstruir o mundo”, alegava ele. Num primeiro momento, Bispo foi internado no Hospital Nacional dos Alienados, até ser transferido para a Colônia Juliano Moreira, onde morreu, em 5 de julho de 1989, e onde sua obra permanece em exposição, na Estrada Rodrigues Caldas nº 3.400.
Vozes celestiais
Toda coleção é voltada à sua recriação de mundo, do inventário que Deus mandou que ele executasse guiado por vozes celestiais, que só ele ouvia. O próprio artista considerava que os objetos que ele produzia eram parte de uma única obra: a recriação do mundo. Ao transformar o lugar de confinamento numa oficina de trabalho, ele fez com a linha e agulha, resíduos, despojos, enfim, produtos banais, a matéria-prima de sua prática criativa.
A extraordinária vivacidade de seu acervo atraiu a homenagem da escola Acadêmicos do Cubango, de Niterói, que em 2018 desfilou com o enredo “O rei que bordou o mundo”. Antes, o artista foi tema de dois enredos do carnaval carioca, pela Unidos do Porto da Pedra, em 1997, e pela Tradição, em 1999.
Esta semana, nesta mesma reunião do colegiado, o Iphan também avalia a proteção de Literatura de Cordel, do Terreiro Ilê Obá Ogunté Sítio Pai Adão, de Recife (PE); do Terreiro Tumba Junsara, de Salvador (BA); da Procissão do Senhor dos Passos, de Florianópolis (SC), e do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, do Estado de São Paulo.