O climatologista carioca Andrews José de Lucena, 40 anos, bacharel e mestre em Geografia, doutor em Ciências Atmosféricas, tem algumas respostas para esse temido aumento progressivo das temperaturas, sobretudo no verão, que já estamos vivendo no Rio de Janeiro, sob a influência de El Niño. O que aumentou, de fato, segundo ele, foi a sensação de calor, que alia temperatura, umidade relativa do ar e ventos. E tudo isto está relacionado à verticalização urbana, aos materiais usados nas construções, à redução do verde e expansão do asfalto. Professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro desde 2011, Lucena defende a necessidade de aprofundar as pesquisas para se chegar a conclusões mais precisas. Aos que duvidam do aquecimento global, ele recomenda ouvir os pesquisadores, “que têm as propostas mais racionais à gestão do clima”.
Como explicar o aumento do calor nos últimos anos e da sensação de calor, antes sequer mencionada?
O que deve ter aumentado nos últimos anos é a sensação de calor, ou uma piora do conforto térmico, que alia temperatura, umidade relativa do ar e vento. O aumento do calor, como se fala corriqueiramente, é uma expressão errônea para o aumento da temperatura do ar. A tendência da temperatura nos últimos anos é de aumento, mas a sensação de desconforto térmico é mais temida. Este aumento é dado por condições fundamentalmente locais, como a diminuição dos espaços arborizados e aumento dos espaços construídos. Já as mudanças climáticas de escala global podem ser mais um fator impactante, são, porém, necessárias mais pesquisas para estabelecer correlações entre o clima global e o clima local.
A tendência é a de que os verões continuem a ser cada vez mais quentes na tórrida cidade do Rio de Janeiro?
Nos estudos que desenvolvi com 10 estações meteorológicas no Rio de Janeiro, entre 1951 até 2010, a tendência da temperatura apontava para o aumento de todos os períodos sazonais, incluindo o verão. Este estudo precisa ser atualizado, mas a tendência estatística já é reveladora. O que temos visto no atual século com temperaturas elevadas, muitas vezes acima da média ou superiores ao registrado nos anos anteriores, pode revelar uma tendência estatística de aumento. Entretanto, as pesquisas com os dados climatológicos precisam ser mais analisados estatisticamente, considerando a atuação de sistemas regionais e globais. Para este verão, por exemplo, esperam-se temperaturas acima da média por conta do fenômeno El Niño, que tende a aquecer as cidades da região Sudeste. Por outro lado, já foi noticiada em recentes verões anteriores a atuação da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), sistema proveniente da Amazônia que injeta umidade e chuva em muitas partes do Brasil na primavera-verão, incluindo o Rio de Janeiro. Além do aumento das chuvas, tende a despencar as temperaturas máximas. As duas situações mostram a complexidade atmosférica da região Sudeste e, particularmente, do Rio de Janeiro, sujeito a diferentes fenômenos e sistemas que precisam ser considerados nas análises de tendência de temperatura.
Para o senhor, como mitigar essa tendência no Rio de Janeiro?
Se a tendência da temperatura for mesmo para um aquecimento, obedecendo ou não a uma escala global, a cidade precisa se proteger. Essa proteção reúne a seguinte equação: arborização (manutenção ou criação) + restrição e qualidade das construções (tipos e coloração dos materiais empregados) + disposição do arruamento e limites da verticalização (direção e deslocamento do vento, a insolação e o sombreamento). Não é uma equação simples e, por isso, as políticas públicas devem reunir uma equipe interdisciplinar, com profissionais como engenheiros, arquitetos, geógrafos, entre outros. Juntos, eles poderão definir ações que atuem na efetiva saúde ambiental da cidade, representada pela promoção do conforto térmico..
Mas e se a temperatura não tender ao aquecimento?
A equação será a mesma. O Rio de Janeiro é uma cidade tropical que abriga, desde os relatos dos seus primeiros moradores no século XVI, condições de alta temperatura com alta umidade que favorecem ao desconforto térmico e humano. Portanto, em uma cidade urbanizada como agora e em franco processo de expansão para antigas áreas remotas da Zona Oeste, a mitigação é questão de sobrevivência para uma cidade cada vez mais caótica e insalubre, que tem perdido suas florestas, seus mananciais e sua atmosfera natural.
As temperaturas dos relógios digitais espalhados pela cidade são verossímeis e confiáveis?
Elas são apenas uma aproximação da temperatura real do ar ou para o conforto térmico. Os relógios não são calibrados, estão expostos ao tempo presente (sol ou chuva) e geralmente registram entre 3 e 5 graus Celsius acima das temperaturas registradas nas estações meteorológicas padrão, como a do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) ou do Centro de Operação Rio (COR), que têm divulgado diariamente a temperatura do ar no Rio de Janeiro. Nestas, sim, a temperatura registrada é confiável.
Na última segunda-feira o Rio sofreu um violento temporal que inundou pontos da cidade. Além da falta de manutenção, as chuvas também estariam mais intensas?
Há pelo menos 150 anos o Rio é vitimado por chuvas que causam enchentes. É uma constante na história da cidade. Além das condições de infraestrutura, uma vez que volumes baixos de chuva já são suficientes para causar catástrofes, alguns trabalhos têm mostrado um aumento no volume de chuvas, o que pode ser associado ao aumento da temperatura. Espaços mais aquecidos e com alta disponibilidade de corpos hídricos, como é o caso do Rio de Janeiro, são favoráveis à ocorrência de chuvas, que podem ser mais concentradas e intensas. É o que podemos classificar como “chuvas urbanas”. É uma importante pesquisa que precisa ser aprofundada na cidade.
Em seu mais recente artigo, o senhor mapeou os locais mais quentes da cidade. Quais são esses locais e o quê explica esse acúmulo de calor?
O artigo mapeia os espaços mais quentes e mais amenos da cidade do Rio de Janeiro entre 1984 e 2016, com imagens de satélite, técnica que permite abranger uma grande área, como a nossa. Os resultados indicam que a Zona Norte e a Área Central da cidade, que correspondem às Áreas de Planejamento 1 e 3 da Prefeitura do Rio, são os espaços mais quentes. No ranking dos bairros mais quentes estão Vasco da Gama, Cidade Nova, Jacaré, Bonsucesso e Praça da Bandeira. No verão ou no inverno esta classificação pouco muda, apenas inclui Del Castilho, que alterna sua posição com Bonsucesso. São bairros atravessados por importantes avenidas e vias, como as avenidas Rodrigues Alves, Francisco Bicalho, Brasil, Dom Hélder Câmara e Rua Uranos, entre outras ruas e avenidas que conectam o adensamento urbano dos bairros da Zona Norte e da Área Central. O bairro do Vasco da Gama é relativamente novo, mas de urbanização pretérita da antiga área industrial de São Cristóvão e adjacências, atravessado por importantes ruas, avenidas e a Linha Vermelha. A Cidade Nova, um bairro novo, também localizado em uma área antiga da cidade, inaugurando a entrada da área central pela Avenida Presidente Vargas, é palco de intensas transformações. Jacaré, Bonsucesso e Del Castilho são antigos bairros industriais, com grandes galpões, e atualmente com uma extensa zona residencial, principalmente em espaços de favela. Em suma, são bairros com uma urbanização antiga e consolidada, desprovida de áreas arborizadas, mas com extensa cobertura asfáltica, fatores que facilitam a entrada e estoque de energia, contribuindo para o aquecimento e maior liberação de calor, que provoca o desconforto térmico.
Ainda existem pessoas, como o presidente dos EUA, Donald Trump, que contestam as teses científicas sobre o aquecimento global. O que o senhor diria a elas?
As principais revistas científicas do mundo, como a American Journal of Meteorology e a Journal Climate Change, Nature e Science, entre outras, constatam a realidade das mudanças climáticas rumo a um aquecimento global. Mais de 90% da comunidade científica internacional, que pesquisa sobre o tema, atesta esta realidade em curso ou que se aproxima. Ainda que haja divergências, o que é absolutamente comum, importante e saudável no meio científico, é uma minoria que precisa de mais tempo para assegurar suas afirmações pouco consistentes para reverter o atual quadro na ciência mundial sobre as mudanças climáticas. O aquecimento global não pode ser encarado como uma ideologia política, como defendem alguns, inclusive no Brasil, a ponto de se favorecer setores da economia, como o agronegócio e as mineradoras. Há ainda os que veem na região amazônica, maior bioma tropical do mundo, uma oportunidade de exploração, devastando sua vegetação por outro uso e causando sérias alterações no ciclo climático global, como o aumento da emissão e concentração de gases estufa na atmosfera, responsáveis pelo aquecimento. Neste contexto, os governantes, incluindo Donald Trump, devem ouvir os pesquisadores, pois eles têm as respostas ou as propostas mais racionais à gestão do clima.