ASSINE
search button

Amigos prestam solidariedade a Nelson Rodrigues Filho em almoços regados a memórias da resistência à Ditadura

Beto Herrera -
Vestindo camisa do Fluminense, Nelsinho recebe amigos para as resenhas de sábado, num restaurante no Leme: vítima de AVC, tem o lado direito paralisado, mas está lúcido
Compartilhar

Se a fraternidade é vermelha, em poucos lugares do Brasil ela se manifesta nesse matiz como no pedaço de quarteirão que separa o Martinez do apartamento onde mora o engenheiro eletricista e jornalista Nelson Rodrigues Filho, no início do Leme. Nesse restaurante, um grupo de amigos se dedica, nas manhãs de sábado de pouco mais de um ano para cá, a recebê-lo com demonstrações de afeto, solidariedade e, sobretudo, de amizade. Para uns, a ligação com Nelsinho remonta à infância; para outros, à militância na luta armada contra a ditadura, nos anos 60 e 70. Para outros mais, a relação que os leva a esse solidário convescote de frente para a beleza do mar de um especial naco da Zona Sul do Rio nasceu de pura e simples admiração pelo ex-preso político, vítima de um acidente vascular encefálico hemorrágico no final de novembro de 2015, que o levou a uma internação, em estado crítico, até maio do ano seguinte. De comum entre a turma, a indubitável profissão de fé política alinhada com os diversos matizes rubros da esquerda — para além, claro, de uma paixão unânime pelas discussões de boteco sobre futebol.

Nelsinho, que fará 74 anos em junho, sofreu o acidente vascular em 27 de novembro. Durante a internação — conta o amigo de infância Sérgio Henrique Mendes Alvarez, para todos o infatigável Tchecha — os amigos temeram o pior. Dos seis meses que o Velho, como Nelsinho é carinhosamente tratado pelo grupo, ficou internado, três foram passados no Centro de Tratamento Intensivo e unidades intermediárias do Hospital São Lucas, após ser submetido a uma neurocirurgia. “Ficamos muito pessimistas. Os prognósticos eram sombrios, inclusive de médicos amigos. Mas ele foi se recuperando e está aí”, afirma Tchecha.

Macaque in the trees
Vestindo camisa do Fluminense, Nelsinho recebe amigos para as resenhas de sábado, num restaurante no Leme: vítima de AVC, tem o lado direito paralisado, mas está lúcido (Foto: Beto Herrera)

Nelson Rodrigues Filho, que foi preso quando atuava no Movimento Revolucionário 8 de Outubro, entrou na luta armada meio por acaso, segundo o jornalista Cid Benjamin, então dirigente do MR-8 e um dos autores intelectuais (e executores) do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969. “Na época, eu estava sendo caçado, como responsável pelo setor armado do MR-8. Eu morava num quarto, por questões de segurança, precisava ir para um apartamento. Nelsinho era simpatizante da organização, e como tinha uma vida legal, alugou o apartamento em seu nome. Não tinha a menor ideia de que ele era filho do velho Nelson [Rodrigues]. Ficamos amigos, e quando decidimos assaltar um veículo de transporte de valores, o convidei pra ação porque não tínhamos um motorista que soubesse dirigir aqueles caminhões com câmbio horizontal. Ele topou e, a partir daí, acabou participando de outras ações”, recorda-se Cid.

Tanto mais são emocionantes tais encontros com o Velho quanto, por trás deles, capta-se um traço marcante da personalidade do próprio alvo dessa demonstração semanal de solidariedade. Sua veia fraternal se revelou, mais do que em qualquer outro espaço, num icônico episódio que mexeu com o coletivo de presos políticos reunidos nos anos 70 no presídio da Frei Caneca, hoje desativado. Nelsinho era um dos “hóspedes” ali alojados. Nessa época, os militares forçavam militantes a gravar depoimentos fazendo autocrítica da luta armada e elogiando o regime.

Submetidos, subjugados e enfraquecidos moralmente, alguns assinaram documentos que eram usados em grandiloquentes comunicados do porão reproduzidos docilmente na imprensa e em inserções na TV. Na Frei Caneca, o truculento método dobrou o preso Manoel Henrique Ferreira, militante, como Nelsinho, do MR-8. Ele participara da ação de sequestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970, e outras ações armadas de contestação à ditadura. Em decorrência de sua forçada autocrítica, Manel — como sempre foi chamado pelos companheiros — ganhou um “gelo” do coletivo.

Ficaram por conta de Nelsinho, já na prisão, os primeiros movimentos para restabelecer o convívio de Manel com os demais prisioneiros. “Manel ficou segregado um tempo por conta de um gesto provocado por sessões bárbaras de tortura. Depois, nas audiências, fazíamos questão de estar presentes, para mostrar nossa solidariedade. Ele foi recebido de volta pelo grupo de presos, e o Velho teve participação ativa nessa “reabilitação””, lembra Tchecha.

Macaque in the trees
Nelsinho (Foto: Beto Herrera)

Cid, um dos organizadores dos encontros semanais com o Velho, não chegou a conviver diretamente com Manel na prisão. Mas dela saiu como um dos militantes libertados em troca do embaixador alemão, de cujo sequestro Manoel Henrique participou. “A decisão, desde o início, foi só dar um gelo nele. Entre o gelo completo e a reabilitação, Manel ficou um tempo convivendo com os companheiros de prisão sem “direitos políticos”. Ele participava das discussões mas não votava. Mas já era um avanço para recuperar seu moral. Quando os presos foram transferidos para a Fortaleza de Santa Cruz, a barra ficou ainda mais pesada. Um dia, botaram um maluco de pedra na cela dos presos políticos. O cara gritava, arrumava briga. Os presos se rebelaram, conseguiram tirar o doido do convívio, mas a barra apertou ainda mais. Tentaram quebrar o moral do grupo, e o Manel se manteve firme. Por conta disso, teve os “direitos políticos” restituídos”, conta Cid, filho de Iramaya Queiroz Benjamin, que, no final dos anos 70, se tornaria uma das mais ativas militantes do movimento pela anistia, conquistada em 1979.

Durante a prisão, Iramaya “adotou” Manel. Mesmo sob intensa pressão do porão, e arriscando-se a cair de novo nas garras dos carrascos, Manoel tornou-se a primeira voz a denunciar a farsa dos atos de contrição forçada. Ainda estava preso quando, em 1976, escreveu uma carta a dom Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, relatando corajosamente as torturas a que havia sido submetido para se declarar como “arrependido”. Com a anistia, à saída dos presos decorreu outro gesto de grandiosidade fraterna de Nelsinho: ao abrir com os amigos Tchecha e Carlos Antonio Trappa (Dado) o Barbas, emblemático bar da Rua Álvaro Ramos, em Botafogo, o Velho chamou Manel para trabalhar com eles. O ex-militante começou como garçom, foi a caixa e, depois, ganhou parte da sociedade no empreendimento.

O bar acabou, mas a amizade sobreviveu ao naufrágio comercial. Com ela, reforçou-se o viés fraternal do Velho. Manel começou a ter os primeiros sintomas de uma doença degenerativa, que lhe roubava os movimentos dos membros. Nelsinho incentivava a solidariedade dos amigos (“Temos de marcar um encontro, reunir todo mundo, pra levar o Manel. Podia ser todo sábado”, propôs a Tchecha). Da ideia à ação, Tchecha organizou um primeiro encontro cerca de um ano e meio antes da morte do ex-militante, em janeiro de 2014: “Com certa frequência, eu, o Velho e outros amigos passamos a assistir a jogos na casa do Manel. Ele era Vasco, e ficava pilhado muito facilmente. Em especial quando a gente sacaneava o time dele”.

O Velho, Tchecha e amigos começaram a montar um esquema de socorro econômico, para ajudar nas altas despesas com o tratamento de Manel, que passou a precisar de acompanhante em tempo integral. Foi dessa experiência com o socorro vermelho que, tendo Nelsinho, por sua vez, sido apanhado pelo acidente vascular e em seguida a sua alta, Tchecha passou a se empenhar na realização dos encontros semanais com o amigo, que conhece desde os 6 anos. Juntou-se a Cid e outros companheiros (Milton Temer, Mario Presidente, Nei Barbosa, Edmundo Souto etc.) e deram forma aos encontros no Martinez. O Velho vai em cadeira de rodas, levado em geral por uma das cuidadoras e sob a atenção absoluta da filha Cristiane. É um guerreiro atingido por uma paralisação do lado direito do corpo, mas lúcido. É capaz de reconhecer velhos amigos, dá demonstrações de sensibilidade com o que lhe passa no entorno e de paixão imorredoura pelo Fluminense — uma paixão que compartilhou toda a vida com o pai, Nelson Rodrigues.

Beto Herrera - Nelsinho