Uma testemunha da morte da menina Jenifer Gomes, de 11 anos, na quinta-feira, dia 14, em Triagem, na Zona Norte da cidade, baleada no peito próximo ao bar da mãe, contesta a versão da polícia de que ela foi atingida durante um confronto entre traficantes. Na versão da testemunha, no dia da morte, dois policiais militares teriam entrado na favela disfarçados e mudado de roupa dentro do carro da PM. Esses policiais teriam trocado tiros com os traficantes. Depois do tiroteio, os PMs disfarçados teriam sido substituídos pelos policiais fardados que socorreram a menina baleada.
De acordo com o relato da testemunha, os dois PMs teriam entrado na comunidade de chinelos, bermudas e camisetas. Eles se esconderam em um buraco na linha do trem e, em seguida, teriam entrado atirando e gritando "perdeu, perdeu". Um homem chegou a ser baleado e arrastado para uma casa. "Nessa confusão, a menina foi baleada. Então eles fugiram. Em seguida, os policiais fardados chegaram. Eles foram avisados por rádio pelos que estavam disfarçados", contou uma pessoa que teve acesso ao relato da testemunha.
Segundo Rute Sales, do Fórum Estadual de Mulheres Negras e moradora do conjunto Bairro Carioca, do programa "Minha casa, minha vida", mesmo local onde Jenifer vivia, esta não foi a primeira vez que policiais disfarçados entraram na comunidade e atiraram contra traficantes. No início de janeiro, conforme Rute, um deles teria se disfarçado de "cracudo" (usuário de crack). Vestido com bermuda, chinelo e camiseta, com a arma na cintura, foi levado até aos traficantes quando disse "perdeu" e começou a trocar tiros. "Em seguida, chegou uma viatura da PM que deu apoio à ação do PM disfarçado. Naquele dia, não houve mortes", contou Rute.
Ainda de acordo com a representante da comunidade, nas duas situações envolvendo os policiais disfarçados, eles desapareceram da comunidade na chegada dos policiais militares fardados. "A declaração é de que a Jenifer foi atingida durante uma guerra de facção [versão da Polícia Militar]. É esse o pacote agora? É esse o pacote encomendado para nós? Um pacote que se manda o policial sem farda e que ele mata, e depois, manda o fardado, que socorre. Que lógica é essa? Antes, tínhamos o pacote de plantar o auto de resistência. Agora é um outro pacote. Eu acho que o policial pode entrar disfarçado para fazer o trabalho dele, mas não vestido de "cracudo" e começar atirar no horário que bem entender", lamentou Rute.
Os familiares de Jenifer e representantes da comunidade pretendem apresentar a denúncia da testemunha logo que for formalizada a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Com medo, a mãe da criança, Kátia Silene, teria fechado o bar da família. A vizinhança conta que policiais militares sem farda estão sendo vistos rondando a comunidade.
Silêncio da secretaria da PM
Procurada para comentar as denúncias da testemunha, a Secretaria de Estado de Polícia Militar não se manifestou sobre a questão. Sobre o caso, voltou a informar que equipes do 3º Batalhão da Polícia Militar (BPM), no Méier, foram acionadas para checar um roubo de carga no condomínio Morar Carioca, em Triagem, no início da tarde do dia 14. Segundo o comando da unidade, ao chegarem ao local, os policiais de depararam com populares carregando uma criança ferida. A equipe deu continuidade ao socorro e encaminhou a menina ao Hospital Municipal Salgado Filho, no mesmo bairro.
Ainda conforme a PM, uma outra fração das equipes seguiu em varredura e encontrou um homem baleado carregando uma mochila com entorpecentes e uma pistola calibre 380. O ferido foi socorrido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Engenho Novo. Um segundo homem também foi atingido e socorrido por moradores locais na UPA de Manguinhos. Segundo o comando do batalhão, nenhum policial da unidade efetuou disparos de arma de fogo durante o episódio.
De acordo com o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, essa lógica do infiltramento, também chamada de P2, é antiga: "É claro que eles se preservavam. Normalmente, não vão fazer confronto para preservar a identidade. Essa deles se revelarem em confronto com os próprios traficantes é a novidade. Eles trocarem tiros é mais raro. A não ser que seja uma situação em que eles [os policiais] sejam descobertos. Aí eles precisam fazer isso para sobreviver, porque se não serão mortos mesmo".
Vinte tiroteios por dia
O laboratório de dados sobre violência armada do Fogo Cruzado mapeou 666 tiroteios (disparos de arma de fogo) no mês de janeiro de 2019, uma média de 21 registros por dia. O número apresenta uma redução de 3% em relação a janeiro de 2018 (690). Desses registros no primeiro mês do ano, há aumento de 54,07% quando é avaliado os casos que tiveram a presença de agentes de segurança. Esse ano, foram 208 registros contra 135 no mesmo período de 2018. O Fogo Cruzado também revela aumento de 8,78% nos números de mortos no período passando de 148 para 161 casos.
Dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) na sexta-feira informam que o número de mortes por intervenção de agente do Estado também cresceu, se comparado a janeiro de 2018. Ao todo, 160 mortes por intervenção de agentes foram registradas, três vítimas a mais que o mesmo período em 2018, quando ocorreram 157. O crescimento no número de óbitos foi de 82% se comparado a dezembro de 2018. Conforme o ISP, esse indicador vinha apresentando uma tendência de queda desde agosto do ano passado, quando foram registados 176 óbitos.
Para o deputado Waldeck Carneiro, do PT, os dados do Fogo Cruzado são alarmantes: "Esse dado é uma aberração. Estamos numa guerra civil não declarada", lamentou o parlamentar. Segundo o deputado, o Estado tem combatido o crime de forma violenta: "Tem que combater o crime, mas o Estado está usando métodos que o crime usa e não está surtindo efeito. O Estado é o estado. Os agentes públicos não são bandidos ou não deveriam ser. Não pode praticar em nome do Estado aquilo que a gente condena ou repudia".