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Sábado, 31 de maio de 2025

O bolicho e o burrichó

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         Dante Mendonça, num livro curioso e divertido, Serra abaixo Serra acima (Florianópolis, Editora Bernúncia), lembra-nos a origem da palavra burrichó. Veio do espanhol burro hechor, que designa o burro reprodutor.

         O burrichó não é o burro. Este não se reproduz por ser resultado de mistura híbrida de jumento e égua.

         A mula também não se reproduz. O imaginário luso-brasileiro diz que a mula foi livrada de gravidez e parto desde que atravessou o deserto, rumo ao Egito, levando sobre o dorso Nossa Senhora e o Menino Jesus, quando a Sagrada Família fugia do rei Herodes.

         São José, sempre sem dizer palavra alguma, acompanhou os três a pé. Só mesmo o repertório cristão e suas ricas e ilustrativas lendas, que têm o fim de fazer com que a doutrina seja entendida, para informar de modo tão imaginoso uma travessia que foi feita de outro modo. Afinal, em viagem tão longa pelo deserto, só mesmo um camelo! Ou dois! Pobre São José! A pé, quanto não lhe terá custado em sofrimento o longo percurso!

         Mas e o bolicho? O que faz aqui na crônica ao lado do burrichó? Então, como dizem os paulistas, antes de começar qualquer prosa, é comum a presença do burrichó nas proximidades do bolicho, seja solto no potreiro, cobrindo as éguas, seja amarrado em frente ao estabelecimento, aguardando o dono.

         O dono às vezes demora e volta bêbado. Pois bolicho, do espanhol boliche, designa estabelecimento onde se joga boliche, mas também onde se vende de tudo, como na bodega, incluindo cachaça.

         Dante Mendonça, além do Dicionário dos Campos Gerais, onde explica a origem de burrichó, traz nos outros capítulos histórias deliciosas, entre as quais algumas de velórios.

         Para um escritor, o velório no interior é uma fonte de pesquisa extraordinária. Ainda que não goste de contemplar os mortos no caixão, sempre me encantou observar o que fazem e como se comportam os vivos que para ali acorrem.

         Dante Mendonça nos informa que lá pelos lados de União da Vitória, Palmas e Guarapuava, pontificava um contador de histórias chamado Jaguara, frequentemente chamado para animar velórios, mormente quando era realizado em noite de muita friagem.

         O boêmio Jaguarra, como a si mesmo se chamava, por influência da ascendência alemã, contou o seguinte caso num dos velórios que animou. Diz que chegou cedo em casa, disposto a mudar de vida.

         Chamou Cinelândia, como se chamava a patroa, e foi logo pedindo uma canja de galinha para o jantar e um cálice de cachaça com butiá. A patroa ouvia atenta. Pensando que mulher estava gostando de suas novas atitudes, pediu-lhe também que preparasse um banho de sal grosso, mas antes o ajudasse a tirar as botas. E coroou todos esses pedidos com a seguinte pergunta: “Tem mais, amorrzinho: quando eu derminarr no banhêrra, adivinha quem vai me vestirr epentearr?”. E a patroa, alemoa brabíssima, no mesmo dialeto: “O rabecón do funerráriaJaguarra!”.

         Se esta crônica se parecer com um causo de velório ou de bolicho, eis um escritor realizado.

Deonísio da Silva, escritor e doutor em letras pela USP, é pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá e diretor de Relacionamento.  Seus livros são publicados no Brasil pela Editora Leya e Novo Século