A partir da publicação da obra seiscentista O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, a tradição ocidental diagnosticou que quem estivesse apto a consumir narrativas de ficção – novelas de cavalaria – encontrar-se-ia na iminência de se tornar um sério candidato aos surtos da congênita e abissal insanidade (ou alienação) humana. Em consequência deste equivocado laudo assinado por ineptas mãos semialfabetizadas que, decerto, tais rubricas abrangem de latifundiários a pequenos burgueses e ministros, de militares a industriários e diplomatas, de forma rudimentar e retrógrada, o livro passou a ser uma arriscada ameaça à sensatez cerebral da sociedade contemporânea composta por ignaros não leitores.
Todavia, consta que o hábito de ler jamais poderia ser considerado como elemento causador de demência mental, a não ser na consciente proposição estética concebida por Cervantes, com o intuito de desestabilizar os percursos literários, que norteavam a tradição novelística, leia-se prosa de ficção produzida na Europa trovadoresco-medieval. Destarte, a leitura fora atirada a um inconcebível patamar de patologia clínica e contagiosa, desde a estúrdia experiência quixotesca que, a princípio, justifica e faz com que a cúmplice pátria tupiniquim compreendesse nitidamente quando o ex-presidente da República, senhor Luiz Inácio Lula da Silva, se declarara em seu púlpito eleitoreiro um não leitor convicto, por ser "chato" e lhe "dar azia" o exercício de unir as letras impressas, seja em estúrdios escritos jornalísticos ou pergaminhos arabescos. Por conseguinte, um autêntico anti-Quixote – lúcido e ignorante!...
Dito isto e divulgado pelos meios de comunicação, julgo que o incauto ex-líder sindical desautorizou qualquer viabilidade de campanha publicitária de âmbito governamental via Ministério da Educação, no tocante à importância da leitura na formação de um próspero e ordeiro país sul-americano que, metaforicamente, alcunharam de Brazil. Desavisada nação esta capitaneada durante quase uma década por um homem que, num outro desastroso depoimento, desvalorizara o diploma universitário, no instante em que esfregava na face de uma naçãoacademicista o seu honrado certificado de torneiro mecânico concedido pelo Senac, cujo insigne documento, sem dúvida, o avultara à incontestável condição de chefe de governo republicano.
De outra feita, cabe a indagação referente ao fato de que como um iletrado capitão de já grisalha barba e verdes bravatas poderia dissimuladamente ocultar da sociedade brasileira este pecado moral ou ético, em hipótese alguma confessado por pessoas públicas – a autêntica ojeriza e desprezo ao ato de ler? No bojo desta resposta ainda caberia outro questionamento: será que se acaso se proclamasse do Oiapoque a Garanhuns um leitor voraz num confessionário público, o renomado líder desta tropicália macunaímica sem nenhum caráter não estaria ofendendo os seus potencialmente analfabetos eleitores, estupefactos com tal arrogância proveniente de uma pífia e dissimulada erudição elitista?
É óbvio que o senhor Luiz Inácio faz parte de uma multidão de semiletrados funcionais, aos quais não foram imputados quaisquer programas de iniciação à leitura; e, sem sombra de dúvida, isto não decorrera apenas por intermédio de sua procedência de imigrante nordestino. Caberia ainda atentar para uma incômoda constatação, que deságua na frase-sentença: O cidadão brasileiro, de um modo geral, não está habituado ao ato de ler e escrever, não só por exclusiva falta de incentivos educacionais jamais discutidos com seriedade em nenhum momento da História pátria, como também por desinteresse que o condiciona a uma deplorável categoria de indivíduos sem ilustração, discernimento e sabedoria. O mais grave é que a ínfima parcela da sociedade brasileira com um grau aceitável de consciência crítica presencia atônita a uma tácita censura ao ato de ler, porque à imensa camada social, composta por uma pirâmide de miseráveis analfabetos e não ledores rudes e endinheirados, seja negado por inépcia ou desprezo o real acesso ao livro publicado em papel ou internet.
Enfim, caso a questão seja meramente financeira, por que não se pensar num projeto inovador de divulgação de tais registros literários, historiográficos, filosóficos e afins, por intermédio de construção de bibliotecas com laboratório de informática? Isto de modo a capturar, mal parafraseando o prólogo do mestre espanhol, este "desocupado" não leitor e inseri-lo no universo das letras, a fim de que, com talento e inspiração, se erradicasse a epidemia que assola inculta nação de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa – a síndrome de Dom Quixote.
Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco