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Segunda, 5 de maio de 2025

O amanhecer do Kraken 

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 “O Kraken era uma espécie de lula ou polvo gigante que ameaçava os navios no folclore nórdico. Este cefalópode tinha o tamanho de uma ilha e cem braços, acreditava-se que habitava as águas profundas do Mar da Noruega, que separa a Islândia das terras escandinavas, mas poderia migrar por todo o Atlântico Norte. O Kraken tinha fama de destruir navios, mas só destruía aqueles que poluíam o mar e navios de piratas”. 

Depois de assistir a centenas de testes atômicos, a trilhões de metros cúbicos de esgoto sem tratamento, a tantos milhões de toneladas de metais pesados e lixo, de infinetesimais lançamentos de chuva ácida e finalmente a milhões de metros cúbicos de óleo serem lançados nas águas, finalmente acordamos o Kraken do  profundo mais do que profundo, fundo do mar. Lá onde reina o mais absoluto silêncio e a eterna escuridão, onde tudo reina sob centenas de atmosferas, toda a ação gerou mais esta última reação do senhor absoluto das vinganças.

Vindos da água, cuspimos, defecamos, urinamos, contaminamos diariamente por centenas de anos a mesma, como não devêssemos nada a ela, a nossa existência.

Poucos alertaram, mas de nada adiantou, pois a maioria era surda e cega diante de tamanha ameaça, e naquela manhã ensolarada, quando continuávamos a agredir sem acreditar em qualquer profecia ou modelo matemático, simplesmente quem trabalhava de graça, suspendeu suas atividades por tempo indeterminado e cobrou a fatura vencida.

A primeira onda veio da base, do placton, que vivendo em ambientes completamente acidificados, simplesmente dissolveu-se nos oceanos. Junto deles todas as estruturas calcáreas existentes desapareceram, e o que era verde tornou-se de um azul, um azul sem fim, onde não havia mais qualquer sentido para a vida existir.

A segunda onda veio em seguida, onde por completa falta de alimento, definharam, espécie por espécie, produzindo uma chuva de detritos no fundo das águas, apenas visto algumas vezes naquilo que foi chamado de Terra. A decomposição da vida nos mares era saudada por imensas quantidades de metano na mais completa falta de oxigênio nas águas, antecipando o que aconteceria em breve na composição da atmosfera.

A terceira onda veio de onde os modelos matemáticos não dispunham de como avaliar o quando e a quantidade, aquele último e definitivo empurrão, ladeira abaixo. O Kraken além de habitar o fundo dos mares também habitava o fundo da terra, e foi dela que vieram os gases necessários para a mudança total.

Na quarta onda, onde havia o pouco de verde na terra, tudo secou rapidamente, e tudo que dependesse de oxigênio pereceu e ardeu liberando todo o carbono bondosamente guardado por milhares de anos.

Na quinta onda, o metano congelado do fundo dos oceanos espirrou como champanhe, e nas terras geladas livrou-se do frio que o aprisionava há milhares de anos.

Tudo parou, tudo mudou, e onde a diversidade marcava a paisagem planetária de longe do negro espaço, tudo se decompôs em unidades, cada vez menores, com o objetivo final de reiniciar novamente o que dera errado.

Diante de sua obra na sexta e última onda, o Kraken daquele último homem e da última mulher, envergonhados diante de sua obra, se abraçaram e choraram a morte de seu último filho e adormeceram sem nunca mais terem acordado.

Finalmente, a ira do destruidor de mundos havia sido cumprida, e mais uma vez teríamos repetido o erro cometido em tantos outros mundos espalhados pelo universo.

Kraken dormia novamente e com ele todos os nossos sonhos........”.

Pois bem, escrito esse Armagedon ambiental, no dia seguinte abri o jornal, e na parte de ciências a manchete dizia: “Lagos das terras geladas borbulham”. Senti um calafrio e continuei lendo, pois o metano aprisionado em camadas de gelo (solos congelados denominados permafrost), em consequência do aquecimento global, iniciava sua liberação. Lembrei do que eu havia escrito no dia anterior sobre a “quinta onda” do Kraken e preferi esperar para publicar essas linhas ainda meio duvidoso dessa intenção.

No entanto, depois de ler novamente o jornal e ver o resultado das comemorações de fim de ano na praia de Copacabana, onde a praia foi transformada num imenso lixão e onde as pessoas pareciam pouco se importarem com aquela situação, meu Kraken me olhou bem nos olhos, e abraçados suspiramos juntos.

Continuaremos lutando, mas com a quase certeza de que estamos liquidados, pois constato que a imensa maioria das pessoas não está nem aí para esse tal ambiente, literalmente defecando, urinando e sujando o que estiver pela frente.

Apenas lamento pelas crianças, animais e vegetais, bem como pelos que pensam e lutam.

* Mario Moscatelli é biólogo e ecologista. -  mangue@domain.com.br