A selvagem ameríndia Iracema, da obra literária homônima de José de Alencar, se prefigura como uma concepção heroica romântica que, com vultos de anagrama do vocábulo América em seu percurso pitoresco e lendário, se movimenta no âmbito simbólico por três níveis da narração: 1) Virgindade / O segredo da Jurema / A violação da América: 2) Conciliação / A inadaptabilidade de Martim / O conflito das etnias; 3) Expiação / O nascimento de Moacir / O fruto da terra
Ao situar a heroína indígena num patamar alegórico a partir da conjugação de elementos alicerçados nos conceitos de Origem e Fundação, a tessitura narrativa idealizada por Alencar delineia o discurso com alusões referentes ao fato de que a virgem dos lábios de mel se desdobraria num ritmo de significâncias múltiplas, que a impeliriam ao mítico, extrapolando o caráter histórico: 1) A raça ameríndia anterior ao contato com o branco colonizador – Origem; 2) A miscigenação étnica entre o indígena e o conquistador europeu – Conciliação; 3) A frutificação das etnografias – Fundação.
Por este ângulo, observa-se que, conquanto haja os Caubis, Irapuãs e Potis europeizados, se percebe a construção de uma brasilidade sob a égide de um nacionalismo forjado por grilhões ufanistas, a ponto de o intelectual Agripino Grieco ressaltar que, em Iracema, aflora uma inexplicável originalidade local com o cheiro e gosto do país que, se o índio não foi como Alencar imaginara, deveria assim o ser. No cerne de toda a idealização do silvícola em harmonia com Natureza-Pátria, a concepção heroica se apresenta como uma espécie de elemento etnográfico passível de consignação com o europeu colonizador, Martim.
Destarte, neste esboço ficcional poder-se-ia afirmar que a filha de Araquém, pelo viés de uma arquitetura ideológica concebida pelas manifestações revolucionárias oitocentistas, se estrutura em dois patamares de representação instaurados pelo Romantismo brasileiro: 1) A adequação da imagem dos primeiros americanos arrancados das páginas de Gandavo, Jean de Lery, Aires de Casal, Fernão Cardim ou Vicente de Salvador, previamente desprovidos dos ritos antropófagos e poligâmicos; 2) O engendramento de uma fabulação produzida por mecanismos dialógicos, que se pautam na valorização do modelo de herói extraído das páginas da novela de cavalaria Amadis de Gaula, autorizada pela vertente do retorno ao passado histórico.
É fato que as mencionadas desapropriações de caráter lendário em muito contribuiriam para a instauração do Mito do Bom Selvagem, originado pela inversão do índio em cavaleiro medieval, inclusive descrito com mãos delicadas para acarinhar a dócil face de Cecília d'O Guarani. Folcloricamente, ainda assim fora o autóctone de arco, flecha e tacape quem dera o grito de independência pós-Pedro I. A partir deste raciocínio, quiçá seja de bom alvitre salientar que o invasor europeu e o selvagem ameríndio se encontram em condições de igualdade, devidamente distanciados – o primeiro pelo espaço geográfico; e o segundo, pela cronologia proposta por arranjos ideológicos de um período colonial transcrito pelos cronistas dos séculos 16 e 17. Logo, constata-se que os elementos etnográficos da composição conciliatória do enredo não resistiriam ao aprisionamento ficcional romântico.
Outro fator de advertência consiste no apagamento racial ocasionado pela não presença do elemento negro no romance indianista, haja vista o registro sofreria acusação de suprimir a origem africana na constituição étnica da nação cordial e hospitaleira. Quanto a estas considerações críticas a respeito da eliminação da presença do negro, não se levando em consideração o caráter mercadológico/escravocrata, em que situação narrativa caberia a inserção de tal elemento etnográfico supostamente rejeitado pelo projeto de nacionalidade concebido por José de Alencar que deságua em Iracema?
Quiçá os pios leitores reivindicassem que a partir da conciliação das etnias indígena, branca e negra José de Alencar inventasse um Sexta-Feira para acompanhar o Robinson Cruzoé genro de Araquém pelas matas tropicais ou quem sabe se arranjasse um sujeito "preto retinto" qual um Macunaíma batizado como Moacir, para figurar numa ópera antropófaga de Carlos Gomes com o seguinte esperneio congênito: “ – Ai, que preguiça!...”
Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e ‘O enigma Diadorim’. wanderlourenco