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Quarta, 7 de maio de 2025

Pasolini: o inconformado realista e sua crítica à razão em 'Saló'

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Pasolini – O intelectual engajado. O italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) era um realista que buscava na arte (tanto em suas obras literárias como também em seus filmes) uma tradução crítica da realidade: fonte de todas as coisas, da vida, do amor e da morte. Desta forma, não há jogos metafóricos ou alusões poéticas em seus filmes: seus quadros são objetivos e transmitem exatamente aquelas sensações que se absorvem deles. Pois, para o autor, o cinema é o despertar da consciência. De si e do mundo. Não há representação. A peça cinematográfica, tal qual num espelho, reproduz imagens, coisas, objetos, que carregam embutidos profundos significados. Agrupá-los num plano, montá-los numa cena é fazer com que o sujeito-espectador veja e, mais, perceba os sentidos que essas imagens, coisas e objetos possuem no mundo tangível, sensível, na realidade objetiva do espectador, e não no universo abstrato da poesia, realidade esta alcançada apenas por meio da evocação e da alusão.  

O cinema em Pasolini, portanto, torna-se uma experiência filosófica, “vitalista”, que nos direciona, então, para fora, para o mundo exterior: o ramerrão ordinário e inconsciente que, no entanto, sustenta toda a força expressiva da vida. “O cinema é isto! Nada mais do que estar aí, na realidade!”, dizia. Assim, a obra de Pasolini deve ser encarada como uma contundente crítica política, um engajamento militante a favor da vida em todas as suas dimensões e nuances.

Das primeiras poesias num dialeto italiano, desconhecido inclusive pela maior parte dos próprios italianos, o Friulano, o cineasta passou a preocupar-se cada vez mais com as culturas marginalizadas e reprimidas pelo governo fascista. De escolha puramente estética, que correspondia à voga europeia da época do hermetismo poético, Pasolini adotou em suas obras a postura política que manifestava na vida, claramente identificada com o comunismo e os ideais socialistas, defendendo, então, aquela classe de homens excluída do sistema burguês. Em um texto publicado originalmente no periódico Gente, no ano de sua morte, o autor esclarece: “Me atrai no subproletário a sua cara, que é limpa (enquanto a do burguês é suja); porque é inocente (enquanto a do burguês é delinquente); porque é pura (enquanto a do burguês é vulgar); porque é religiosa (enquanto a do burguês é hipócrita); porque é insensata (enquanto a do burguês é prudente); porque é sensual (enquanto a do burguês  é frígida); porque é infantil (enquanto a do burguês é adulta); porque é imediata (enquanto a do burguês é previdente); porque é gentil (enquanto a do burguês é insolente); porque é indefesa (enquanto a do burguês é decorosa); porque é incompleta (enquanto a do burguês é acabada); porque é confiante (enquanto a do burguês é rija); porque é terna (enquanto a do burguês é indolente); porque é feroz (enquanto a do burguês é extorsiva); porque é colorida (enquanto a do burguês é branca)” (PASOLINI apud LAHUD, pág. 66).

Se estivesse vivo, Pasolini teria completado 90 anos em 5 de março último. O mesmo tom provocador de suas primeiras obras poéticas, num dialeto ignorado, o cineasta manteve em seus filmes e em sua vida intensa: uma posição inconformada e inconformista, agressiva, quiçá, e escandalosa; pouco compreendida, talvez, mas nunca indiferente. O caso mais marcante desta incompreensão se traduz pelo nome de Saló, ou os 120 dias de Sodoma.

Saló – Diatribes à razão destrutiva. Saló, ou os 120 dias de Sodoma (1975) é o último filme do italiano Pier Paolo Pasolini. É uma obra para quem tem estômago forte e para quem não se apega a melindres que o impeçam de assistir a brutalidades fictícias. Saló é um registro cruel, na verdade, mais que isso, é um testemunho em imagens do que pode alcançar um tipo de racionalidade quando encontra prazer no sadomasoquismo que somente pode ser praticado quando se tem poder absoluto. Tudo que é perpetrado em Saló é obra da razão, de uma razão perversa, e não de uma irracionalidade devassa. Pasolini critica os desvios da razão, sua retórica vazia e abjeta, seus atos inconsequentes capazes de transformar o desumano em atrativo artístico. 

Pasolini narra sua estória na Itália fascista da Segunda Guerra. Em um castelo decadente-elegante, quatro cavaleiros do alto escalão do Dulce selecionam e aprisionam jovens belos, garotos e garotas – com vigilância constante de imberbes soldados, que também são das imediações onde residiam os jovens “eleitos” – para os quais três mulheres contarão histórias eróticas que servirão de estopim para aguçar a mente dos quatro poderosos homens do regime fascista. Dividido em três partes, além do epílogo, “Circulo das manias”, “Círculo das fezes” e “Círculo de sangue”, Saló mergulha fundo na barbárie, extraindo dela a compulsão pela destruição da beleza, pois os quatro cavaleiros selecionam, ou melhor, capturam apenas jovens atraentes; mostra o ápice de uma razão que distorce a sensibilidade e a delicadeza ao colocar a cropofagia como ato de grandeza humana; e a morte como obsessão última do poder avassalador da razão instrumental que não encontra adversário nem quem defenda a sensibilidade das suas maquinações. Tanto que uma das mulheres – espécies de anfitriãs e narradoras do fascínio humano pelo subterrâneo das taras sexuais – não aguenta o espetáculo de sangue e se joga para a morte. Ela representa, naquele instante, a nossa perplexidade. Pasolini encontrou inspiração em Sade, Nietzsche, Bataille, entre outros, para compor sua genial mise-en-scene.

Pier Paolo Pasolini deixou como herança filmes contundentes a respeito do modus operandi da decadente vida burguesa. Filmes que conclamaram um mundo de liberdade sexual, política e artística e, com Saló, imprimiu a obra cinematográfica que desvelou com mais contundência a retórica de uma razão que sabe buscar justificativas para seus arbítrios brutais, sua ambição voraz e seus jogos de palavras que escondem os escombros de sua perfídia. A naturalidade como a faz é que Pasolini denuncia. Poucos pareceram compreender, enxergando a crueldade pela crueldade, no que é, na realidade, a mais devastadora crítica às diatribes e ações do gesto capitalista – consoante a razão instrumental – de esvaziar pelo consumo (isso mesmo, todas as atrocidades contidas em Saló refletem a compulsão do consumo exacerbado) até a dignidade humana.

 

* Thiago Costa é mestre em história e autor (ao lado de Luzo Reis) do curta-metragem de ficção 'Boneca de Neuza'. ** Wuldson Marcelo é mestre em estudos de cultura contemporânea e revisor de textos.