Em resposta ao calor das ruas, após severas críticas quanto à inconstitucionalidade de assembleia específica para pensar a necessária reforma política do país, a presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional, no dia 2 de julho, em caráter de urgência, mensagem por meio da qual propõe ao Legislativo a realização de plebiscito para aprovação de alterações no sistema eleitoral brasileiro. A mensagem foi encaminhada em mãos pelo vice-presidente, Michel Temer, e pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, professores de direito constitucional e direito administrativo, respectivamente.
A Presidência da República sugere consulta prévia à população sobre cinco questões centrais: forma de financiamento de campanhas eleitorais (pública, privada ou mista), definição do sistema eleitoral (voto proporcional, distrital, distrital misto, "distritão", proposta em dois turnos), continuidade ou não da existência da suplência no Senado, manutenção ou não das coligações partidárias e fim do voto secreto no Parlamento.
A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, foi oficiada para que informe o prazo necessário para preparar o país para votação. A resposta do TSE, sufragada pelos tribunais regionais eleitorais, foi emblemática: serão necessários, no mínimo, 70 dias após a edição do decreto legislativo, o que coloca em xeque a efetividade e adequação da consulta ao princípio da anualidade garantido pelo artigo 16 da Constituição federal.
Diante deste quadro, o debate deverá ser ampliado – e muito – no Congresso Nacional, eis que não será possível cumprir com o exíguo prazo para que as alterações sejam válidas já para a próxima eleição, em 5 de outubro de 2014. Este atropelo do Executivo poderá desencadear uma reforma de afogadilho, que tornará ainda mais complicado o já bastante deteriorado sistema eleitoral brasileiro, de modo que aquela resposta da Presidência poderá ser pior do que a encomenda. É prudente evitar-se o açodamento, uma vez que a discussão política, em um sistema eleitoral cambaleante, merece maiores considerações entre a comunidade jurídica, setores pensantes do Executivo e o Congresso Nacional: é perfeitamente defensável, nesta altura dos acontecimentos, que a consulta seja posterior à consolidação da novel legislação eleitoral, por meio de referendo, a emprestar a mesma legitimidade popular perseguida pela presidente da República.
De fato, há projetos de emendas à Constituição, aprovados tanto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados como também do Senado, com desperdício de energia pública, que tratam do mesmo tema proposta na mensagem presidencial: acabarão as votações secretas no Parlamento, principalmente quando da cassação de mandatos. Diante dos princípios da transparência e representação, o voto secreto de quem fala pelo povo não se coaduna com o Estado de Direito, bastando que os diversos projetos que tratam da mesma matéria sejam compilados pela Mesa do Congresso Nacional a fim de que se evitem discussões conflitantes em torno da mesma situação jurídica.
Os tribunais eleitorais também deixaram claro que não se mostra razoável questionar a população, seja em razão do prazo, seja em razão da necessidade de grande aporte de recursos públicos para promoção de maciço esclarecimento na grande mídia, acerca de temas tão complexos como a forma de eleição dos deputados federais (e, pelo princípio da simetria, para deputados estaduais, distritais e vereadores). Voto distrital, nas suas várias facetas, ou manutenção do voto proporcional envolvem conceitos, como quociente eleitoral por exemplo, que resiste em meio às coligações partidárias, que são inacessíveis para a grande massa. Pesquisas de rua dão conta de que a população, ao menos por ora, não sabe diferenciar sistemas de votação para o Legislativo, pelo que calha o alerta deixado na resposta dos eleitorais sobre a vinculação da consulta, mormente de sua base principiológica, e o possível rompimento da ordem jurídica constitucional caso o Congresso se rebele quanto aos resultados.
Muito embora a realização do plebiscito conte com aprovação de 68% da população e parte da base governista, quer nos parecer que a Presidência da República perdeu a oportunidade de eclodir outras questões fundamentais para sorte do sistema político nacional. Não há como se discutir qualquer reforma eleitoral sem que seja analisada a obrigatoriedade de voto, conforme artigo 14, §1º, I da Constituição federal. Muitos defendem seja o voto facultativo com a finalidade de que seja extirpado o chamado “voto de cabresto” ou mesmo mitigada a possibilidade de compra de votos. Isso se mostra ainda mais evidente quando se analisa o crescimento espantoso do número de abstenções, votos nulos e brancos nas últimas eleições, o que revela a insatisfação popular com o atual sistema político nacional e, evidentemente, com os candidatos de sempre. A resposta do povo nas urnas, ou melhor, a falta dela, é indicativo preciso da necessidade premente de que o sistema eleitoral seja repensado e arejado.
Não há como se debater o sistema eleitoral sem que se repense a reeleição para o Executivo, questão não sugerida pela Presidência e, ao que parece, deixada para segundo plano. Todavia, não raro, se faz uso da máquina para lograr mais quatro anos de mandato. O rolo compressor da situação impede o debate político a contento pela sempre frágil oposição. Com frequência, a propaganda eleitoral no curso do mandato é escancarada, e a punição com multa é branda, de modo que a eficiência do governo ganha concorrência séria pela visão mesquinha de manutenção do poder. De fato, o mandato de cinco anos, sem reeleição, é uma possibilidade que não pode ser alijada do respectivo debate. Por outro lado, não mais se sustenta a reeleição indefinida no Legislativo, sob pena de que continuemos a verificar verdadeiros intocáveis nas casas legislativas, com mandatos que perduram por décadas.
O recall de parlamentar, sugerido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, também deve ser trazido à discussão no Congresso, porquanto poderá obrigar à realização de moderna e eficiente legislatura, ao mesmo tempo em que permitirá fiscalização pelo representado no bojo de uma democracia participativa.
Daí por que a pauta de reforma política deverá ser ampliada no Congresso Nacional e sugerida à população somente após consolidada a sua base constitucional, com referendo para as alterações que serão verificadas em 2016. Se é salutar a vontade política da presidente, cuja vaia em público a fez descobrir que a insatisfação geral atinge em cheio direitos sociais garantidos constitucionalmente, então bandeira política de seu governo, não é por meio de reforma política feita a toque de caixa o modo pelo qual o governo responderá de forma republicana à indignação da população.
A partir deste momento, deflagrada a reforma política no Congresso, deve o governo federal voltar suas forças para a aplicação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, cuja Lei 12.587/12 não deveria ser novidade para nenhum gestor público, assim como para as questões que envolvem boa administração e reestruturação da educação, saúde e segurança pública, pontos fundamentais reclamados em todos os protestos das últimas semanas e que, se bem engendrados, trarão resultados efetivos a médio prazo.
* Fabio Martins Di Jorge é advogado da área de Infraestrutura, Ambiental e Constitucional do escritório Peixoto e Cury Advogados. - [email protected]