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Sábado, 3 de maio de 2025

Guia de leitura sobre Clarice Lispector

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Aos leitores mais apavorados com a ficção Clarice Lispector, confesso que a minha traumática experiência deu-se em razão de que eu não conseguia chegar ao fim de nenhum de seus livros, até que já aos vinte e poucos anos, não sem angústia ou estranhamento, debrucei-me sobre o registro literário Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Naquele instante apaixonei-me pela autora a tal ponto que, de fôlego, devorei como um canibal de biblioteca toda a sua obra ficcional. Com efeito, de uma hora para outra passei a ser considerado pelos colegas de Letras da UFF como o “clariceano”. Sarcasmo e ironia à parte, com toda sinceridade o lado bom deste bendito rótulo era que o fato de já ser uma espécie de iniciado em Lispector incitava a curiosidade das estudantes niteroienses que, indiscretas e afoitas, se sentiam no direito de querer saber como eu possuía tamanha sensibilidade de leitura e vivência intelectual para compreender a essência de Clarice...   

É óbvio que, pacientemente, com disciplina boêmia nas mesas do Pardal eu explicava o método prático de interpretação e análise crítica a ser aplicado em Clarice Lispector, que inventara para enfrentar a famigerada escritora de O lustre e Água viva. Por vezes, quando havia necessidade de uma discussão mais minuciosa sobre A via-crucis do corpo ou o kafkiano A paixão segundo GH, com afinco de aprendizes as moças varavam as madrugadas do Largo de São Domingos. Peço desculpas ao leitor por tal preâmbulo marcado pelas reminiscências daquele tempo bom, que transcorria à luz da cerveja gelada e da carne seca no feijão, sem as contemporâneas exigências do fatigado fígado... Em verdade, mais que desculpas, peço permissão aos senhores para retratar por intermédio da crônica aquela época em que, no intervalo das conversas acaloradas sobre literatura, esbarrávamos em Bruno Tolentino ou tropeçávamos em Nelson Pereira dos Santos, no boteco mais conhecido como Bar do Caranguejo. 

Após o breve introito, inicio o roteiro de leitura sobre Clarice Lispector, recomendando que o ritual de iniciação ocorra pelo viés do livro de contos Laços de família, obra-prima do gênero, que se notabiliza, sobretudo, pela composição dos contos Feliz aniversárioA menor mulher do mundo e Amor. Após adentrar pelas narrativas de menor fôlego, creio que o mais apropriado será descobrir as agruras da datilógrafa nordestina Macabéa, protagonista de A hora da estrela. Apesar das inúmeras digressões narrativas de um tal Rodrigo S.M., suposto autor do romance, que Benedito Nunes decretou ser a “história da história”, sem dúvida, A hora da estrela vem a ser o livro de Clarice, que oferecerá uma leitura menos árdua, sobretudo pela construção do enredo, em que o desenlace se afigura em diálogo com A cartomante, de Machado de Assis. 

Todavia, é preciso atentar para uma questão que se constrói “ligando o narrador à sua criatura, como resultante do enredamento da narrativa em curso, das oscilações e o ato de narrar, hesitante, digressivo, a preparar a sua matéria, a retardar o momento inevitável da fabulação, constitui uma terceira história – a história da própria narrativa” (NUNES: 1995). Às margens do drama da linguagem, porém, virá à tona no decorrer da narração o esvaziamento discursivo das personagens, sobretudo da heroína clariceana, que, em resposta ao determinismo naturalista, nos remeterá ao clássico Os sertões, de Euclides da Cunha, ao conto Urupês, de Monteiro Lobato, e ao registro Vidas secas, de Graciliano Ramos. 

A supressão da expressividade do sujeito provindo do campo, em particular, e do ser humano de um modo geral, surge para desmistificar a ideia de que o que mais o aproximaria da condição animal não seria quando se pautasse por seus instintos; mas, sim, no instante em que lhe fosse arrancada a expressão mais genuína da identidade humana – a sua voz, o seu discurso. Quanto a isto, vide o diálogo entre Olímpico e Macabéa. Ao desbravar a obra em questão, imagino que o leitor já estará apto a ler o emblemático Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, não sem perder de vista o inusitado de uma obra de ficção, que se inicia com uma vírgula e termina com dois pontos.   

 

*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF e pós-doutorando da Universidade de Lisboa, é professor universitário e autor de diversos livros, entre os quais, O enigma Diadorim (Nitpress) e ‘Antologia teatral’(Ed. Macabéa). -wanderlourenco@uol.com.br