No sul do país um promotor de justiça, cuja função é “zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes” desrespeita uma jovem de 14 anos vítima de violência sexual praticada pelo próprio pai. No Rio um coronel da polícia, cuja função é a preservação da ordem pública, é flagrado abusando de uma criança de dois anos e tenta subornar o corpo de policiais que o prendeu alegando a força de sua patente. O Instituto de Segurança Pública, no Dossiê Criança, aponta que entre 2010 e 2014 houve um aumento de 46,7% no número anual de crianças vítimas de violência. Confirma também que 68,2% dos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes são praticados no lar.
O mesmo dossiê revela quais são os alvos preferenciais da repressão: são os jovens pardos (49,8%) e negros (31,5%), ou seja 71,3% os considerados pelos “donos do poder” como indesejáveis, enquanto as vítimas são: brancos (46,9%) e pardos (40,8%), sendo 93,5% de meninos. O que sinaliza que estamos vivendo uma guerra social e racial. Por outro lado, o Sistema Socioeducativo do estado padece de recursos para cumprir sua tarefa definida na Lei e além das violências físicas provocadas pela superlotação dos equipamentos, muitas tem sido as mortes de adolescentes sob a guarda do Estado.
Diante dessa selvageria institucional, o CNJ visando organizar o monitoramento das medidas aplicadas tanto aos adultos quanto aos jovens em conflito com a lei determinou que os Tribunais criassem um Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo para zelar pelo fiel cumprimento das leis e da Constituição. Vários Estados já cumpriram essa resolução, menos o Rio de Janeiro, cujo Tribunal rejeitou por maioria a criação desse instrumento fundamental para dar dignidade ao cumprimento das sentenças judiciais.
Além dessa salutar medida, a Presidência do Tribunal, encaminhou para deliberação pelo Órgão Especial a transformação de uma Vara Criminal comum em uma Vara Especializada em Violência contra criança e adolescente para dar maior celeridade e qualidade na apreciação e julgamento dos casos em que crianças e adolescentes são vítimas em número elevadíssimo, como aponta o Dossiê Criança foram 49.276 vítimas só nos cinco últimos anos. Dados anotados nas ocorrências policiais, que representa um sub-registro equivalente a apenas 15% da realidade fática. Proposta rejeitada por unanimidade do órgão que tem a função de solucionar os conflitos, ditando o direito dos cidadãos. Fica a pergunta: Quando o artigo 227 da Constituição da república deixará de ser letra morta e criança e adolescente serão prioridade absoluta?
* desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a democracia.