O pacote anunciado pelo governo do Rio de Janeiro nesta sexta-feira (4), um conjunto de medidas visando o equilíbrio das contas públicas, inclui ações diversas que vão do aumento do desconto previdenciário e da tarifa do Bilhete Único à extinção de várias secretarias, entre elas, a Secretaria de Estado de Cultura, que foi unificada à de Ciência, Tecnologia e Inovação.
É bastante emblemático que esse anúncio seja feito justamente na véspera do Dia Nacional da Cultura, celebrado em 5 de novembro, anualmente.
Foi Lima Barreto que descreveu em Os Bruzundangas—um livro publicado pouco depois de sua morte, em 1922—uma triste realidade brasileira: “Bossuet (bispo e teólogo francês) dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes”.
Os tempos são outros, mas o pensamento permanece—parece que alguns dos nossos governantes, acham plausível resolver a complexidade de anos e anos de mazelas administrativas distribuindo infelizes “canetadas”, como a que extinguiu a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro.
Planejamento e investimento em cultura não é lastro dispensável em nome de suposta redução de custos. Cultura não é custo, é investimento. Essa atitude preguiçosa do governo do Rio de Janeiro nos obriga a uma reflexão a respeito do significado desta palavra usada com tanta frequência e de formas tão diversas:
Afinal de contas, o que é cultura? Para que serve e qual o seu valor?
O valor da cultura
Eu me lembro de um artigo de José Miguel Wisnik, que apesar de originalmente falar da relação entre música e política, admite uma ampliação, englobando a questão da cultura como um todo.
Sabemos que, em algum lugar e de certo modo, a cultura mantém com a política (pelo menos deveria) um vínculo operante, nem sempre visível, atuando na vida individual e coletiva, enlaçando “representações sociais e forças psíquicas”.
Ora, se por um lado a cultura é foco de atrativos que se prestam a variados usos e manipulações, por outro, é certo que não existe uma “cultura brasileira homogênea” (nem uma “cultura fluminense homogênea”, tampouco uma “carioca”), que seja matriz de comportamentos e discursos.
Admitir seu caráter plural é portanto um passo decisivo para compreender seu efeito, sentido e resultado, a partir de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.
“A cultura é plural, mas não é caótica”, afirmou, já há algum tempo, o professor Alfredo Bosi. Admitindo-se o influxo da cultura em todos os aspectos da vida social, como produto da ação humana, ela pode ser compreendida como processo, como algo em contínua mutação. Seu aspecto dinâmico decorre da ação humana.
A cultura é um produto da ação humana porque cria, transforma, modifica, constrói, valoriza e desvaloriza. Muito se diz a respeito da cultura: “cultura é direito de todos”; “devemos apoiar a cultura em nossa cidade”; “é preciso preservar e transmitir a cultura” etc. Os exemplos são infindáveis e expressam mensagens—verdade seja dita—pouco claras e objetivas.
É importante uma reflexão sobre a noção contemporânea de cultura, assim como a definição, a delimitação de seus contornos e um conhecimento mais preciso do significado do termo, que ““traz consequências tão marcantes, inclusive para a educação”, como nos alerta a professora Vera Rudge Werneck, em seu livro Cultura e valor.
São múltiplas e variadas as formas de se produzir cultura. O termo é polissêmico, empregado em diversos sentidos, o que dificulta o seu entendimento e o seu uso para fins científicos e políticos.
Impõe-se, para a compreensão do fenômeno cultural, o aprofundamento da noção de valor—admitindo-se como valor aquilo que, de algum modo, vale para o homem e satisfaz sua necessidade —, apesar da questão inerente que se levanta a respeito da dualidade desse valor como realidade objetiva ou como mera subjetividade.
Globalização e cultura
A cultura, na “sociedade do conhecimento e da informação”, adquiriu um papel estratégico porque, em um mundo cada vez mais globalizado, a identidade do povo se ampara (e se fortalece) nela—algo que é ainda mais dramático no Rio de Janeiro, um estado cuja diversidade cultural é tão gritante.
O grande desafio contemporâneo da cultura fluminense está na dosagem de dois aspectos fundamentais: o empreendedorismo cultural e o fortalecimento da nossa identidade cultural, acrescentando-se a este “caldeirão de culturas” as questões—não excludentes—da globalização e das novas tecnologias.
Cultura é discurso, um modo de construir sentidos que influencia e organiza as ações e a concepção que temos de nós mesmos.
Globalização é um conjunto de processos atuantes numa escala planetária que atravessam fronteiras nacionais integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornado o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado.
Tanto a autonomia nacional quanto a globalização são tendências que estão profundamente enraizadas na contemporaneidade. A globalização explora a diferenciação do local, sendo mais adequado pensá-la não como substitutiva deste, mas como uma nova articulação entre o global e o local.
É importante que o Rio de Janeiro tenha uma política pública séria e bem pensada para a cultura. É um retrocesso a extinção da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro poucas semanas após sediarmos um evento como as Olimpíadas. É mais do que um retrocesso, é a assinatura de um deplorável fracasso de gerir nossos próprios sonhos e planejar nosso futuro.
Hibridismo cultural
O Brasil e o estado do Rio de Janeiro, com toda sua multiplicidade cultural, precisam manter políticas públicas que possibilitem o contínuo desenvolvimento dos diversos modos e modelos de se pensar e fazer cultura.
O hibridismo cultural é uma resistência importante às tentativas de se reconstruir identidades “purificadas”, contrapostas à diversidade, como se tem visto, por exemplo, no ressurgimento do nacionalismo de direita em determinadas partes da Europa e no crescimento cada vez mais assustador do fundamentalismo.
Portanto, devemos lamentar a extinção da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. É algo desastroso. Ainda mais se levarmos em conta (e devemos levar) o enorme potencial da economia criativa e do empreendedorismo cultural em nosso estado.
*C.S. Soares é editor, CEO da Biblioteca Digital Cidade Livro (https://cidadelivro.com.br) e membro titular do grupo de trabalho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Bibliotecas da Cidade do Rio de Janeiro (PMLLB Rio).