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‘A que novos desastres determinas de levar estes reinos e esta gente?’

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Assim, o Velho do Restelo vitupera a ambição de fama e glória a levar Portugal ao mar tenebroso. Quantos velhos do Restelo não estarão, Brasil afora, bestificados diante de moendas da insensatez a esmagar uma nação, orgulhosa de sua grandeza e confiante em seu futuro? Quantos de nós, brasileiros de todas as ascendências, inclusive aquelas tachadas de indolentes ou de outros preconceitos, subversivamente científicos, quantos de nós, reitero, não estamos desalentados diante do espetáculo montado nos tríplices picadeiros da soberba, da ignorância e da cupidez, que fazem o pano de fundo desta corrida eleitoral? Quantos de nós não estamos a ver o transatlântico Brasil derivar em águas turbulentas?  Que a cada dia sua tripulação se divide entre rancorosos, que o querem afundar,  indiferentes, que subornam os salva-vidas e ratos, que enchem seus coletes com a raspa de seus cofres? 

A sociedade não é cega, mas justa. Sua quietude aparente decorre de seu poder decisório. O poder pertence ao povo e em seu nome é exercido. Assim está escrito na Constituição, que chamam de inútil ou defasada. E, nos últimos dias, programas de governo, de camaleônicos   candidatos, não deixam dúvida sobre a intenção óbvia de desviá-la de seus propósitos e  reescrevê-la com a caligrafia alambicada da nova escravidão moderna. A Constituição  brasileira de 1988 surgiu de uma Assembleia Constituinte visivelmente comprometida com o estabelecimento de um Estado Democrático de Direito. A leitura do texto constitucional, principalmente  acompanhada dos comentários do professor José Afonso da Silva, enriquece a cidadania. Em seu artigo 170, a Constituição trata dos princípios gerais da atividade econômica e nele se explicita que a ordem econômica “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. 

A Constituição defende a iniciativa privada e o capitalismo. Mas ao fazê-lo delineia claramente  a importância do trabalho humano, a existência digna e a justiça  social. Não foi feita para robôs ou para mimetizar regimes capitalistas mais avançados. A leitura do artigo na sua integridade deixa claro que a nação deve procurar o “pleno emprego, a soberania nacional e a redução das desigualdades regionais”. 

É de particular relevância notar o pleno emprego, mensagem clara quanto à condenação de políticas recessivas . A soberania nacional, advertência para a busca de políticas autônomas e a redução das desigualdades sociais. 

Nos últimos três anos os responsáveis pela política econômica criticam, direta ou indiretamente, a Constituição como responsável pela grave situação de desemprego e penúria em que nos encontramos. O que os dirigentes governamentais escondem é que adotam políticas recessivas, contrárias  à letra e ao espírito da Constituição. Fizeram, com a conivência do Congresso, uma reforma trabalhista de resultados contrários à busca do pleno emprego e aos ditames da justiça social. São mais sábios que os constituintes. 

A justificativa decorreria do estado da arte da macroeconomia da modernidade, mais conhecida como neoliberalismo. Política considerada ineficaz e promovedora de pobreza por autoridades nacionais e internacionais. Até o FMI é contra. O Velho do Restelo, como diz Camões, homem “cum saber de só experiência feito”, deverá  estar a compreender, muito antes de nós, por que os programas econômicos de certos candidatos – inclusive o alçado nas pesquisas e o carregado por uma falange conservadora – estejam nas mãos de economistas-banqueiros ou, melhor, banqueiros-economistas. E por que, em todos esses programas se privilegiem cortes adicionais de despesas sociais, e em nenhum deles se mencione uma reforma do imposto de renda mais equânime entre abastados e devastados.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália