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Reativar a arte do dar

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Vivemos em tempos de utilitarismo radicalizado contra o qual é necessária uma revolução do dom. Foi isso que afirmei em artigo publicado aqui no JB. Mas, pergunta-me o leitor, “como querer a revolução se não sabemos ainda o que é afinal este tal de dom?”. A questão do dom é posta com um texto do antropólogo francês Marcel Mauss, escrito nos idos de 1923-1924: “Ensaio sobre a dom”. Mauss se propôs a estudar como ocorriam as trocas nas sociedades arcaicas. Ele investigou os materiais etnográficos de sociedades nativas de uma larga região, do noroeste do Canadá até as ilhas da Melanésia e da Polinésia, no Oceano Pacífico. Infelizmente, não estudou os indígenas da América do Sul, mas encontraria aqui coisas semelhantes. Ele descobriu lá um fato bem generalizado: a existência de um sistema de dons e contradons. Os nativos viviam sob a égide das obrigações de dar, receber e retribuir presentes, de forma (ao menos aparentemente) voluntária e desinteressada. Trocava-se de tudo: coisas, certamente, mas sobretudo almas, pessoas, gestos, espíritos. Mas não se tratava de escambo e, tampouco, de um embrião de mercado. Os nativos sabiam bem distinguir a troca de bens úteis da troca de dons, pois não seria bom confundir a dignidade dos últimos com o prosaísmo dos primeiros. Pelos dons, todas as dimensões se movem: econômicas, religiosas, morais, políticas etc. De forma curiosa, Mauss enfatizou um sistema, chamado “potlatch”, em que as pessoas rivalizavam por generosidade e lutavam se presenteando. Como ganhar do rival? Como adquirir honra? Como ser reconhecido? Ora, dando e retribuindo com liberalidade, mostrando-se mais generoso que todos os outros.

Eis uma estranha regra à primeira vista: “é mais quem mais sabe dar”, e não quem mais ganha e possui. Quem não retribui, “perde sua face”, quem tudo retém, vê-la “apodrecer”. Mauss se perguntava: “que força os move e os obriga a dar, receber e retribuir?”. “É o espírito da coisa dada” – diz-nos. É o fato de, neles, tudo se misturar: ideias e afetos, coisas e pessoas. Quando se dá algo, dá-se algo de si. Quando se recebe algo, recebe-se algo de outrem que deverá ser retribuído, nem que o retorno seja por um terceiro após uma longa viagem no ciclo dos dons. O dom faz um complexo (com-plexus) do todo, ou seja, tece tudo em conjunto. Na poesia dos nativos da Nova Caledônia, a ideia é expressa belamente: os dons são o movimento da agulha para ligar as partes do telhado de palha, para que, tecido pelo mesmo fio, indo e voltando, haja um único teto, uma única palavra… Uma morada a ser habitada.

“Tudo muito belo”, diz-me o leitor, “mas isso é passado. Não há tempo a perder com isso em uma crise!”. Lamentando decepcionar convicções, não se trata de romantizar sociedades indígenas nem arcaizar as nossas. Eis o primeiro sentido de uma “revolução do dom”: é uma mudança no olhar, em que, por outras lentes, todo um mundo diferente se revela. É curioso ver que, após passar por sociedades arcaicas e também muito antigas (Roma, China, Índia etc.), Mauss escreveu longa conclusão sobre dons e contradons nas sociedades modernas. Tendemos a ver tudo pela figura-rei do homo œconomicus: interesses, utilidades, cálculos e recebimentos – tudo que há no céu e na terra. Mas quando olhamos mais atentamente descobrimos o quanto tal retrato é monocromático; “do ponto de vista da eternidade”, para falar como Spinoza, nossa humanidade está sempre a colorir o mundo de virtudes, presentes, inutilidades e gratuidades. Mauss mostra-nos que a motivação do dar e a generosidade são tão importantes para compreender o humano quanto a motivação de receber e o autointeresse. Renegar isso é mergulhar em uma crise mais grave do que a econômica, pois dissolve o que há de mais valioso em nós, ética e existencialmente. 

Revolucionemos o pensamento, repensando nossa humanidade; revolucionemos nossa sensibilidade, tornando-nos sensíveis às presenças (efetivas ou potenciais) dos dons. Deixando ao leitor o desafio de identificá-los em nossas sociedades (questão na qual entrarei em artigo próximo), fiquemos, por ora, com a lição de Mauss: a revolução começa por uma volta sobre nós mesmos, reativando nossa arte do dar e redescobrindo nossa paixão pelo dom. 

* Doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com)