Dois fatos se ligam neste ano a um mesmo filme: o centenário do nascimento de Clarice Lispector (1920-1977) em dezembro e a perda da diretora Suzana Amaral no último dia 25 de junho.
Entre os livros escritos por Clarice, "A Hora da Estrela" é certamente sua obra prima. Da mesma forma que, entre os filmes dirigidos por Suzana, um dos mais importantes foi sua adaptação para as telas do romance da consagrada escritora.
O enredo conta a história de uma das personagens mais comoventes já retratadas pelo Cinema Brasileiro. Interpretada por Marcélia Cartaxo, ela é Macabéa, uma imigrante nordestina semianalfabeta que trabalha numa pequena firma e vive numa pensão miserável. Fiel ao romance de Lispector, o filme expõe a solidão das grandes metrópoles e os aspectos perversos a que muitas vezes são submetidas pessoas ingênuas e sonhadoras.
O filme é um primor, não só pelas qualidades artísticas, como pelo difícil trabalho de adaptação literária, considerado impecável pela crítica especializada. Ligada com sensibilidade ao romance de Clarice, a diretora captou a mensagem do livro numa tocante narrativa cinematográfica que une os fios dispersos de uma vida sofrida, ingênua e profundamente lírica.
Lançado na edição 1985 do Festival de Brasília, recebeu vários troféus, tornando-se um dos filmes mais premiados do evento. Entre outros, ganhou os de Filme, Direção (Suzana Amaral), Atriz (Marcélia Cartaxo), Ator (José Dumont), Fotografia (Edgar Moura) e Edição (Ide Lacreta).
Entre muitos outros prêmios ao longo de sua carreira, também conquistou para o Cinema Brasileiro o Urso de Prata para Cartaxo no Festival de Berlim, um dos eventos cinematográficos mais importantes do mundo.
Em 2009, seriamente ameaçado de perda e em estado deplorável, “A Hora da Estrela” foi restaurado pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB). Em projeto patrocinado pela Petrobras BR e incentivado pelo Ministério da Cultura, felizmente foi possível recuperá-lo através de um primoroso trabalho que teve o apoio da Labocine, e foi realizado por equipe coordenada pelo talentoso restaurador Francisco Sérgio Moreira (1952-2016).
Em entrevista que nos deu na ocasião do seu relançamento, Suzana declarou que não realizou uma adaptação, mas sim uma transmutação da história, já que, conforme explicou, para levar a obra de Clarice para as telas, foi preciso criar uma nova linguagem a partir da narrativa anterior concebida pela extraordinária escritora.
Por tudo isso, “A Hora da Estrela” está entre aqueles filmes que jamais poderiam ser perdidos: seu desaparecimento seria um desfalque irreparável na nossa já tão ameaçada cinematografia.
Quando um clássico como esse volta às telas, além da conscientização para a preservação fílmica receber um grande impulso, seu retorno contribui igualmente para evidenciar a necessidade de, cada vez mais, manter viva a nossa história, os nossos valores e nossa memória cultural. O que as talentosas escritora e cineasta fizeram com louvor.
Myrna Silveira Brandão é Jornalista. Presidente do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB)