"Preciso me encontrar" é o título de uma das mais belas canções do mestre Cartola. Nesta canção, há um verso de profunda beleza: “Se alguém por mim perguntar / diga que eu só vou voltar / depois que me encontrar”. É inevitável que em algum momento na vida experimentemos a sensação de profunda desorientação: são os episódios de crise.
Numa crise pessoal nos sentimos despedaçados. Pedaços de nós flutuam e, por um tempo indeterminado, nos perdemos deles e de nós mesmos. Escrevo essa coluna enquanto analiso o desenho de um paciente que passava por uma profunda crise profissional no início do tratamento. Uma silhueta humana que se deforma é puxada por todos os lados, em direções opostas, como se uma força centrífuga estivesse atuando. Sua desvitalização e ansiedade diante de um quadro de grande ameaça estava alí, simbolizada neste desenho que pretendia responder à pergunta: “como me vejo hoje?”
Na psicoterapia junguiana as técnicas expressivas (o desenho, o uso das miniaturas numa caixa de areia, as colagens, entre outras) auxiliam o paciente a expressar sentimentos e emoções que ainda não foram alcançados pela palavra. Especialmente em momentos de crise, nos faltam palavras para descrever a inundação de emoções que nos assalta. É essa inundação de emoções desgovernadas que nos desorienta e confunde.
As técnicas expressivas funcionam como uma espécie de “radiografia psíquica” e nos permitem entrar em contato com nossas emoções no sentido da reordenação. Esse contato com as emoções por meio da imagem, numa análise, é o que permite a pessoa colocar em palavras, às vezes pela primeira vez na vida, aquilo que sente.
Essa conexão entre emoção, sentimento, imagem e palavra funciona como possibilidade para aquilo que estava disperso e fragmentado possa ser integrado. Nesses momentos de reorientação, é comum que as imagens passem por uma transformação. O desenho do paciente que apresentava uma silhueta humana sendo puxada para todos os lados, do início da análise, agora, passado algum tempo de trabalho, apresenta uma nova forma e começa a ganhar novos significados: a nova imagem é uma silhueta humana bem mais completa, com setas apontando para o centro, num claro movimento de reorganização.
Em seu tempo, Jung percebeu que os pacientes sob seus cuidados desenhavam, com muita frequência, figuras circulares, e ele notou que essas figuras eram em tudo similares às mandalas, figuras circulares, que são produzidas em praticamente todas as culturas humanas desde tempos imemoriais. O que caracteriza a mandala não é apenas a forma circular, mas sobretudo o movimento em direção ao centro.
No budismo tibetano as mandalas são feitas pelos monges com areia colorida, sempre de fora para dentro. Os monges utilizam a mandala como exercício meditativo, ou seja, um exercício de busca de equilíbrio emocional e espiritual; ao final de muitos dias de trabalho, quando finalmente uma mandala de grande beleza está pronta, os monges a desfazem. A dissolução da mandala é um lembrete da impermanência de tudo na vida.
As mandalas, assim como o desenho de meu paciente, são símbolos que expressam a busca da psique por re-centramento, por re-equilíbrio: mas um equilíbrio que nunca será total. Gosto sempre de lembrar de uma frase de Jung: “O ser é um equilíbrio instável”. Usando a analogia tibetana, as crises psíquicas são estados agudos de desequilíbrio, que, se acolhidas e tratadas, podem ser aos poucos dissolvidas e trabalhadas no sentido de um amadurecimento da pessoa, para que ela reconquiste a capacidade de suportar o equilíbrio instável da vida.
Por que trabalhar as imagens da crise é tão importante? Porque numa crise a primeira coisa que perdemos é a capacidade de imaginar um final alternativo, diferente de uma catástrofe. Na minha experiência clínica, as imagens que emergem em momentos de crise são muito primitivas e ameaçadoras: figuras grotescas, deformadas, animais peçonhentos, ogros, bruxas, dragões, animais pré-históricos. Muito frequentemente essas imagens emergem nos sonhos e pesadelos. São imagens que provêm das camadas mais profundas do inconsciente coletivo. São forças psíquicas, os arquétipos, muito poderosamente carregados de energia.
Conferir materialidade a essas figuras, por meio de técnicas expressivas, é o primeiro passo para despotencializa-las e, dessa forma, poder falar "sobre" elas, sem sermos tragados pela inundação de emoções. A carga psíquica pode ser então transformada em palavra e, posteriormente, em sentido; um novo sentido.
Na crise, a inundação de emoções precisa ser canalizada e tornar-se simbólica. O símbolo funciona como uma espécie de estação de tratamento das emoções. Após um mergulho profundo, é a capacidade de simbolizar que vem em nosso resgate.
Os mergulhadores de profundidade sabem perfeitamente que para voltarem à superfície precisam subir bem devagar. Uma subida apressada e pouco cuidadosa pode ocasionar problemas graves hemorragias. A saída de uma crise é também um processo de retorno à superfície após um período em águas profundas. É preciso tempo e cuidado para nos re-encontrarmos. Aqui vale a sabedoria do poeta: “Se alguém por mim perguntar / diga que eu só vou voltar / depois que me encontrar”.
Psicólogo e Psicoterapeuta de Orientação Junguiana