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As asas e a âncora ou... Ele, não!

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Descortinar o mundo à nossa volta é um dos mais difíceis e belos desafios. A dificuldade vem da abundância e complexidade de significados. É também fruto da angústia frente ao acúmulo de informações inversamente proporcional ao tempo disponível para interpretá-las. A beleza vem das infinitas portas que se abrem aos que estão dispostos a interagir e reinventar o tempo presente, dialogar com o passado e alimentar o futuro. E nos caminhos para conhecer a sociedade onde habitamos, as rotas são numerosas. Algumas se entrecruzam sem gerar maiores turbulências, outras significam colisão certeira. Diante da profusão de conceitos, ideias e sentimentos que irrompem no caótico cenário atual, bom ponto de partida pode ser o pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que consideraram filosofia, ciência lógica e arte como as três asas do conhecimento. Nessa perspectiva, às ciências caberiam as funções e proposições, ao passo que à filosofia, os conceitos. As artes estariam intimamente ligadas às percepções, sensações e afetos. Sem atribuir hierarquia de importância, as asas são instâncias criadoras que imiscuem imaginação, intuição, razão e criatividade. Constituem ferramenta para elucidar e expressar o mundo em toda sua riqueza de sentidos.

Contudo, a vastidão de saberes aí envolvida pode conduzir a leituras riquíssimas ou nos confinar em labirintos circulares, onde o excesso de relativização afasta compreensões claras. É necessário, pois, atenção e senso crítico. Ao mesmo tempo em que não se pode dispensar a conjunção de múltiplas formas de ver, é preciso escapar da relativização barata, não perdendo de vista que as áreas do conhecimento são reconstruídas continuamente e que há jogos de poder e ideologia imbricados em seus processos de construção. Assim, o mais adequado seria pensar no plural. Sobre as ciências, deveríamos atentar para o fato de que podem ser ditas aplicadas, exatas, da saúde, naturais, sociais, humanas, não tão humanas assim... As filosofias podem ser Platônicas, Cartesianas, alegremente apaixonadas, como nos falou Espinoza, ou Nietzschianas, assim como falou Zaratrusta... A respeito das artes, podem ser românticas, minimalistas, barrocas, religiosas, cubistas, engajadas, vendáveis, vendidas... Mas é somente por meio do conhecimento que podemos, uma vez conscientes das especificidades, limitações e tendências a ele relacionadas, iluminar questões cruciais para a composição de um país mais justo.

E, não por acaso, hoje, especialmente no Brasil, alguns campos têm sido sistematicamente menosprezados. É o caso da filosofia, cuja competência é a criação e articulação de conceitos. O filósofo é capaz de inventar mundos novos por meio da formulação de concepções que trazem, em si, uma assinatura própria como a ideia e Platão; o cogito e Descartes; ou os afetos e Espinoza. É, portanto, o pensamento filosófico que estimula o olhar reflexivo, questionador e que multiplica alternativas. A etimologia da palavra ajuda a compreender sua urgente importância na atualidade. Na origem do vocábulo, dois termos estão associados: philia (amor) e sophia (sabedoria). Trata-se, portanto, do amor pelo saber e indagação. As artes, historicamente relegadas, têm sido, cada vez mais, encaradas como dispensáveis e mesmo degeneradas. Sim, a exemplo da época nazista, a palavra é atual. Infortunada e perigosamente. Vide o alarde infundado em torno de exposições como o Queermuseu. As instituições científicas, por sua vez, assistem a recursos irrisórios minguarem de forma a comprometer seriamente ações prioritárias de educação básica, pesquisa e extensão universitária.

Tudo leva a crer que querem cortar asas. No lugar delas, desejam fincar o preconceito. A rigor, o preconceito poderia ser encarado como algo saudável na medida em que é a noção antecipada sobre algo que não se conhece ainda. Faz parte do processo de aprendizado formular suposições. “Pré conceito” é a ideia que antecede o conceito fundamentado. O problema está em cristalizar a ideia preliminar, desprovida do embasamento necessário, e propagá-la como verdade inconteste e, frequentemente, a serviço de interesses escusos. Homofobia, sexismo, racismo, elitismo e tantas outras atitudes discriminatórias, nascem da falta de compreensão e inclusão das diferenças. Não que o conhecimento seja garantia para eliminar a discriminação, pois há casos em que o mau-caratismo suplanta o saber, mas sem esclarecimento não há como banir o preconceito. Sim, o conhecimento é asa e nos faz alçar voos inimagináveis. O preconceito é âncora. Ele, não! Ele, não!

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências

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