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Herói da independência do Piauí é quinto avô de Sarney e teria passado escravizador

Linhagem tem visconde que combateu Balaiada e "patriarca do sertão", que teria escravizados, segundo registros

Por JORNAL DO BRASIL com Agência Pública
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Publicado em 24/11/2024 às 12:47

Alterado em 24/11/2024 às 12:47

Valério Coelho Rodrigues, avô do visconde da Parnaíba e sétimo avô de Sarney Foto: família Coelho Rodrigues

Por Bruno Fonseca - Na entrada de Oeiras, cidade de quase 40 mil habitantes no centro do Piauí, um “herói” brasileiro foi imortalizado em uma construção que celebra a data mais importante do calendário oficial do estado. O Monumento 24 de Janeiro, inaugurado em agosto de 2021 após anos de idas e vindas e promessas frustradas de governantes, destaca os feitos de Manuel de Sousa Martins [em grafias antigas, o sobrenome Sousa aparece também com Z] o primeiro barão e visconde da Parnaíba. Ele foi responsável, segundo a história oficial, por consolidar a independência do Piauí, justamente em 24 de janeiro de 1823, na própria Oeiras, então capital do Piauí, quando se declarou ao lado de dom Pedro I e lutou no confronto sangrento da Batalha do Jenipapo, uma das batalhas da independência do Brasil.

Mas o legado do visconde da Parnaíba não se resume aos louros da guerra e da adesão do Piauí ao Estado imperial brasileiro. Martins era pecuarista, dono de grandes fazendas herdadas do pai, que tinha o mesmo nome do filho. Nessas propriedades, o visconde teria usado o trabalho de escravizados.

O visconde é o quinto avô do ex-presidente brasileiro José Sarney, primeiro a governar o país após o fim da ditadura de 1964 e responsável por consolidar o clã familiar dos Sarney no controle do estado do Maranhão.

Quem é José Sarney
Nascido em Pinheiro, no Maranhão, José Sarney de Araújo Costa é advogado, jornalista e político. Durante a ditadura militar, foi eleito governador do Maranhão pela UDN e se filiou depois à Arena. Em 1985, foi vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves, que morreu logo depois de tomar posse, fato que levou Sarney à presidência. Em 1990, foi eleito senador, exercendo três mandatos consecutivos.

A herança escravizadora do patriarca do sertão
A linhagem de Sarney vai longe, muito longe. Para contar a história do seu quinto avô, visconde da Parnaíba, que viveu entre 1767 e 1856, é preciso voltar ainda mais no tempo.

Os antepassados do ex-presidente podem ser identificados com certa facilidade até quase o ano 1500, quando Pedro Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro. Isso porque Sarney descende de uma família tradicional que tem envolvimento com a política brasileira há séculos, os Coelho Rodrigues. A memória dessa família é muito bem preservada, pela quantidade de cargos públicos e posses que seus membros tiveram ao longo dos anos, o oposto do que ocorre com os antepassados de pessoas negras descendentes de escravizados.

Talvez o membro mais antigo da família que ainda guarda notoriedade atualmente seja Valério Coelho Rodrigues, avô do visconde da Parnaíba e sétimo avô de Sarney. Valério, que nasceu em Portugal, na freguesia de São Salvador do Paço de Sousa, em 1713, foi um dos principais colonizadores do interior do Piauí, apelidado de “patriarca do sertão”. O sobrenome Coelho Rodrigues vem de seus avós portugueses, Francisco Coelho e Bento Rodrigues, nascidos no século 17.

Valério ocupou diversos cargos na então capitania do Piauí, desde juiz até ouvidor-geral. Ele era dono da fazenda do Paulista, que ficava num arraial de mesmo nome – a região se tornaria o que hoje é o município de Paulistana. Como muitos homens donos de terra no seu tempo, ele também seria um escravizador. A Agência Pública encontrou registros de pessoas que teriam sido escravizadas na propriedade de Valério, que foram reunidos por um grupo de genealogia dedicado ao próprio patriarca.

“Aos três de agosto de mil setecentos secenta e sete na Fazenda do Paulista Ribeira do Canindé, batizei solenemente e pus os santos óleos a Euzebio filho de Maria Rodrigues preta angolla solteira, escrava de Valério Coelho Rodrigues, pai incógnito” [sic], diz um registro de batismo.

Outros documentos dão conta de batismos de Florêncio, filho de Theodozia, em 1768; de Maximiniano filho de Anna, em 1773; de Ignacia, filha de Benta, em 1774; e de Luiza, filha de Quiteria, no mesmo ano. Em comum, Theodozia, Anna, Benta e Quiteria são todas identificadas como “escravas de Valério Coelho Rodrigues”, na fazenda do Paulista.

A história oficial dá tanta importância ao “patriarca do sertão” que foi criado um prêmio que leva o seu nome: a Ordem Estadual Valério Coelho Rodrigues, decretada em 19 de agosto de 2013 pelo então governador do Piauí Wilson Nunes Martins, na época filiado ao PSB. O próprio ex-governador é um dos herdeiros de Valério – como indica o sobrenome Martins, o mesmo do visconde da Parnaíba. Ele foi homenageado também pelo Tribunal de Justiça do Piauí no ano passado, quando o presidente do tribunal discursou a favor de Valério e se tornou sócio benemérito da Associação de Descendentes de Valério Coelho (ADVC), criada para preservar a memória do patriarca e congregar seus descendentes que até hoje se reúnem em eventos no estado.

Falecido em 1782, o patriarca deixou posses ao seu filho Manuel, que, por sua vez, repassou o legado para seu herdeiro, também chamado Manuel, homem que se tornaria o visconde da Parnaíba.

O herói que garantiu a independência do Piauí e a continuação da escravidão
Manuel de Sousa Martins é celebrado como um dos nomes de maior sucesso da linhagem de Valério Coelho Rodrigues. Isso porque, em 1823, ele ajudou a consolidar a adesão do Piauí à independência do Brasil, que havia sido proclamada no ano anterior pelo imperador dom Pedro I, às famosas margens do rio Ipiranga, em São Paulo.

Martins foi um dos responsáveis por comandar tropas locais contra os portugueses no norte do Piauí, na região do delta do Parnaíba. As tropas lusitanas foram para o interior, em direção a Oeiras, e no caminho foram interceptadas pelos separatistas, como relembra estudo de Pedro Vilarinho Castelo Branco, do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

A chamada Batalha do Jenipapo é frequentemente referenciada como o conflito armado mais sangrento pela independência do país – o humorista Whindersson Nunes chegou a anunciar que faria um filme sobre o evento. Na ocasião, os brasileiros enfrentaram os portugueses comandados por João José da Cunha Fidié.

Com a contribuição na batalha e uma inteligente articulação política feita após a batalha, estava selado o legado de herói libertador do Piauí, e Martins se tornou o primeiro presidente da província, desbancando outras lideranças. Em 1825, ele seria agraciado com o título de barão da Parnaíba, por dom Pedro I, após ter atuado em prol do imperador contra revoltas como a Confederação do Equador, quando Pernambuco e parte das províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará tentaram a independência.

Antes mesmo de conquistar a glória no Piauí, Martins já seria conhecido como proprietário de terras e de pessoas escravizadas. Ele herdaria, pelo pai, diversas fazendas, onde seguiria usando mão de obra escravizada, tal qual seu avô e seu pai teriam feito. “Manuel de Sousa Martins era um grande proprietário de terras e escravos e vice-presidente da Junta Governativa em 1821”, descreve a tese de doutorado de Francisca Raquel da Costa, da pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Segundo os registros, em 1826, período em que o presidente da província era o barão da Parnaíba, a população total do Piauí seria de 84,4 mil pessoas, sendo 25,1 mil delas escravizados (identificados como pretos, pardos e mulatos).

No trabalho, que analisa a escravidão e reescravização de pessoas livres no Piauí no século 19, a pesquisadora aponta como o herói do estado também seria responsável por reprimir a revolta da Balaiada na província. A insurreição, que começou no Maranhão, mas se espalhou para o Piauí e Ceará, durou entre 1838 e 1841 a partir da rebelião de pessoas pobres contra medidas autoritárias, como o recrutamento obrigatório.

Segundo a tese, o barão da Parnaíba seria “conhecido como implantador de uma ditadura rural no Piauí”, devido à legislação que permitia o recrutamento forçado de homens e jovens para lutar contra os revoltosos. O trabalho resgata inclusive a história de um jovem “mulato” de 16 anos, Luiz Mandy, que teria sido enviado para a luta e ficou anos lutando pela sua liberdade contra um coronel.

“Nesse período, o presidente da província era Manuel de Sousa Martins também conhecido como o Barão da Parnaíba e que ficou muito famoso devido à força com a qual comandou a província durante seu governo e também a repressão que organizou juntamente com os líderes de cada região do Piauí, inclusive Miranda Ozório, em relação ao movimento de insurreição”, descreve.

O clã Sarney no Maranhão
A linhagem de Valério Coelho Rodrigues, como apontamos, levaria a uma família numerosa, que até hoje mantém, orgulhosa, sua genealogia.

Essa linha começa com o filho do visconde, José de Sousa Martins, que teria atuado junto ao pai na independência do Brasil, mas também na repressão à Balaiada. Ele é pai de Leopoldina Ferreira de Sousa Martins, mãe de João Leopoldino Ferreira, que foi juiz e bisavô de Sarney.

João é pai de Assuero Leopoldino Ferreira, avô de Sarney, que se mudou para o Maranhão. Ele teve Kyola Ferreira de Araújo Costa, mãe de Sarney, nascida em Pernambuco, mas que também foi para o Maranhão. Ela, por sua vez, se casou com Sarney de Araújo Costa, pai do ex-presidente, que, na verdade, foi batizado como José Ribamar. O nome Sarney viria do fato de ele ser conhecido como Zé do Sarney, devido à fama do pai, que foi promotor e desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Com um pai estabelecido na Justiça, Sarney fez carreira no Legislativo e no Executivo. A lista de cargos que ele ocupou é extensa – e costuma ser referenciada como a maior entre os parlamentares brasileiros vivos. Sarney ocupou o primeiro cargo há quase 70 anos, quando passou de suplente a deputado federal em exercício em 1955. Ele já foi filiado a cinco partidos (PSD, UDN, Arena, PDS e MDB), senador pelo Maranhão e Amapá, governador do Maranhão, presidente do Senado e, talvez o cargo mais conhecido, o primeiro presidente do país após o fim da ditadura de 1964, quando substituiu Tancredo Neves, morto em 1985 antes de tomar posse.

Sarney também instalou sua linhagem no poder: seu filho José Sarney Filho foi deputado federal nove vezes seguidas; sua filha, Roseana Sarney, deputada federal, governadora do Maranhão e senadora; e o neto José Adriano Cordeiro Sarney, deputado estadual. A família Sarney controla o maior grupo de comunicação do Maranhão, o Mirante, tem laços com grandes grupos empresariais de comércio e até mesmo da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), através do seu filho Fernando José Macieira Sarney.

O trabalho de doutorado de Elthon Ranyere Oliveira Aragão, na Universidade Federal de Sergipe (UFS), descreve bem a teia de relações dos Sarney no Maranhão, apontando como a maioria dos deputados estaduais era eleita com apoio do clã. “Além disso, retribuições em forma de doação de concessões de radiodifusão eram comuns, principalmente quando José Sarney foi presidente da república na segunda metade da década de 1980. Os políticos que por ventura perdessem as disputas nos municípios ainda eram agraciados com cargos na administração estadual, através de secretarias (titulares ou adjuntas) no período estudado”, diz.

Questionado sobre as relações com o herói da independência do Piauí e seu passado escravizador, Sarney respondeu à Pública que “se eu tivesse vivido na época de meu pentavô, tendo recebido a sua pergunta, eu diria: ‘Vou puxar a orelha desse Visconde, que deve libertar todos os seus escravos, pois sou abolicionista e vou, ao longo do séc. XIX, ao lado de Joaquim Serra e Joaquim Nabuco, cada vez mais, lutar por essa causa.’ E acrescentaria que ‘eu, no futuro, apresentaria (como apresentei) o primeiro projeto no Brasil das quotas raciais para ascensão da raça negra e ainda que criaria a Fundação Palmares durante a comemoração dos 100 anos da Abolição da escravidão’”.

O ex-presidente ainda completou: “O meu ancestral mais próximo, fruto do meu amor e da minha admiração, é minha mãe, retirante da seca de 1921, de Pernambuco para os vales úmidos do Maranhão”. Veja a resposta completa:

"Se eu tivesse vivido na época de meu pentavô, tendo recebido a sua pergunta, eu diria: 'Vou puxar a orelha desse Visconde, que deve libertar todos os seus escravos, pois sou abolicionista e vou, ao longo do séc. XIX, ao lado de Joaquim Serra e Joaquim Nabuco, cada vez mais, lutar por essa causa.' E acrescentaria que 'eu, no futuro, apresentaria (como apresentei) o primeiro projeto no Brasil das quotas raciais para ascensão da raça negra e ainda que criaria a Fundação Palmares durante a comemoração dos 100 anos da Abolição da escravidão'."

"O meu ancestral mais próximo, fruto do meu amor e da minha admiração, é minha mãe, retirante da seca de 1921, de Pernambuco para os vales úmidos do Maranhão."

"Eu ouvi do meu avô materno muitas vezes a quadrinha:

'Eu vi a cara da fome
Na seca de 21.
Ô bicha da cara feia
Só mata gente em jejum."

 

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