Lei Áurea: a abolição da escravidão no Brasil e a perpetuação do racismo estrutural

Princesa Isabel sancionou lei em 13 de maio de 1888, há 135 anos; legislação brasileira ainda não conseguiu romper as mazelas do racismo

Por GABRIEL MANSUR

Pintura de Victor Meirelles retrata a promulgação da Lei Áurea com a princesa Isabel ao centro, cercada pela elite brasileira e sem a presença de negros e negras

Um dos atos mais romantizados da história da legislação brasileira, a lei que proibiu a escravidão em território nacional completa 135 anos neste sábado (13). A medida tomada, à época, em benefício aos interesses capitalistas, não trouxe liberdade aos negros e negras, mas sim perpetuou o racismo estrutural existente na sociedade.

Fato é que o ordenamento jurídico do país falhou e ainda falha em garantir reparação e direitos básicos para a população negra. Lideranças dos movimentos sindical e negro explicam que, ao assinar a Lei Áurea, em 13 de meio de 1888, a Princesa Isabel não editou nenhuma medida para garantir uma sobrevivência digna para os quilombolas sequestrados no continente africano e escravizados durante anos.

“Eles foram ‘libertados’, mas jogados nas ruas com somente a roupa do corpo e nada mais. Isso contribuiu com a perpetuação do racismo”, diz a secretária de Combate ao Racismo da Central Única dos Trabalhadores, Anatalina Lourenço.

Já para o secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Almir Aguiar, “o 13 de Maio não é uma data a ser comemorada, foi um fato histórico que omitiu a luta do povo negro contra a escravidão, e até os dias atuais a historiografia tem omitido o nosso legado”.

Graças a muita luta

A Lei Áurea foi sancionada pela princesa Isabel em 1888. Ela ocupava o trono porque o pai, Dom Pedro II, estava em viagem na Europa. A monarquia passava por uma crise que veio a derrubar a coroa e transformou o Brasil em uma república no ano seguinte.

Vendida até os dias de hoje como um ato de benevolência, a lei na verdade foi uma resposta a tensões populares que se intensificavam cada vez mais.

À época, já havia um movimento de libertação pelos próprios escravos, com as lutas dos quilombos pela liberdade e, em especial, pelas mulheres escravizadas que, pelo trabalho forçado, compravam a liberdade de seus filhos e companheiros.

Não coincidentemente, o capitalismo estava em ascensão no mesmo período e esse foi um fator preponderante para a homologação da lei.

Antes da abolição, a monarquia já havia instituído a Lei do Ventre Livre (de 1871) e a Lei dos Sexagenários (de 1885). Ambas foram propagandeadas como acenos à liberdade, mas na verdade traziam benesses para famílias proprietárias e, na prática, não garantiam o fim da servidão.

A primeira delas definia que nenhum escravizado nasceria em solo brasileiro e que filhos e filhas de mulheres negras deixariam de ser propriedade. No entanto, as crianças deveriam viver em cativeiro, com as mães, até os oitos anos de idade. Até os 21 anos, elas só podiam ser libertadas por decisão dos donos e donas e, mesmo assim, ficariam sob tutela do estado.

Já a Lei dos Sexagenários definia que pessoas com mais de 60 anos seriam livres, mas não poderiam deixar o local de cativeiro até os 65 anos. O texto também determinava uma indenização às famílias proprietárias, que seria paga com três anos de trabalho da pessoa escravizada.

A ascensão do capitalismo

A abolição libertou escravizados, mas não trouxe nenhuma reparação pelos quase 300 anos anteriores de escravidão. Almir Aguiar lembrou que a Lei Áurea tinha somente dois artigos, sem qualquer proposta de política pública.

“Isso fez com que o preconceito, o racismo, o feminicídio, o genocídio do povo negro e a falta de inclusão no mercado de trabalho mais qualificado se tornassem uma realidade cruel até os dias de hoje. Mas a nossa luta por uma sociedade inclusiva e sem racismo é permanente”, completou.

À época, chegavam os primeiros imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, uma mão-de-obra branca que agradava à elite e favorecia o capitalismo. Este fato, por si só, explica o branqueamento do mercado de trabalho, que perdura até os dias atuais. Os dados do IBGE mostram que entre os 9,5 milhões de desempregados no Brasil, no 3° trimestre de 2022, 65% eram pretos ou pardos.

Quando a Lei Áurea foi assinada, havia ainda uma cobrança da sociedade, de abolicionistas e até mesmo da polícia, que rebelou-se tomando a atitude de não mais ‘caçar’ os escravos fugitivos. Por isso, e em acordo com os latifundiários que exigiam que a propriedade das terras não sofresse qualquer consequência, a Lei foi assinada e os negros foram libertos.

Estava imediatamente extinta a escravidão no Brasil. No entanto, a lei não previa nenhum mecanismo de inserção das pessoas libertas à sociedade. Pelos 100 anos seguintes, o país não tentou reverter as desigualdades econômicas, educacionais, de acesso à terra e ao trabalho impostas à população negra.

Os homens ficaram à margem da sociedade e tiveram de recorrer a furtos para poderem comer, já que eram hostilizados pela sociedade branca. Daí vem o termo “marginal”, estigmatizado até os dias de hoje e, geralmente, usado para se referir a negros.

Já as mulheres continuaram a "prestar serviços domésticos para suas senhoras", porém com uma singela remuneração. Como o racismo perdurou ao longo dos tempos, a profissão, hoje conhecida como 'empregada doméstica', é ocupada, na grande maioria, por mulheres negras.

Trabalho escravo

O Brasil só criou uma lei antirracismo na década de 1950. Apenas a partir da década de 1990 passaram a ser estabelecidas cotas raciais em universidades e a política só se tornou federal em 2012.

Dois anos antes, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, mais de 120 anos após a abolição. São normas que causaram e ainda causam impactos históricos, mas continuam esbarrando no racismo estrutural, consolidado e reforçado no Brasil, mesmo após a proibição da escravidão.

Reportagem feita pelo Brasil de Fato mostra que de um total de cerca de 500 trabalhadores resgatados por auditores fiscais do trabalho em condições análogas à escravidão, nas lavouras de cana-de-açúcar em 2022, 84% eram negros.

Mas os números são ainda mais alarmantes. No total do país, segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego, no ano passado foram resgatadas 2.575 pessoas nessas condições, em todos os setores, sendo 83% negros e negras. Só em 2023, foram resgatadas 1.201 pessoas em situação semelhante à de escravos.

Racismo segue

Não somente os números e dados acerca de questões sociais e no mercado de trabalho, mas também o preconceito tem sido escancarado no cotidiano. Entre muitos, dois casos ganharam a atenção da mídia nos últimos dias e geraram reação na sociedade.

O mais recente envolve o deputado estadual pelo PT do Paraná, Renato Freitas. Ele foi abordado pela Polícia Federal (PF) dentro de um avião, pouco antes da decolagem no aeroporto de Foz do Iguaçu (PR) - cidade em que ele foi a convite do Ministério dos Povos Indígenas - com destino a Londrina.

Os policiais entraram na aeronave e o retiraram da cabine para que ele fosse revistado por "aleatoriedade", mesmo já tendo passado pela inspeção na máquina de Raio X.

Ainda no início de maio, a professora Samantha Vitena foi expulsa de um avião da Gol (Salvador-Rio de Janeiro) por se recusar a despachar sua mochila, onde guardava seu notebook. A vítima ainda aguardou por mais de oito horas no aeroporto de Salvador até que a companhia aérea disponibilizasse outro voo.