Sem tradutores e sem direito a rituais, mutirão pede proteção a indígenas presos
Audiência pública discutiu criação de lei para tratar indígenas presos dada a frequente violação de seus direitos
Bianca Feifel - “Eu vi a alma dele saindo do corpo”, relatou uma servidora pública que atuou como intérprete e finalmente conseguiu fazer um indígena preso da Penitenciária Estadual de Dourados (MS) entender que ele estaria condenado a uma pena de mais de duas décadas de reclusão. Até então ele não havia sido acompanhado por um profissional que pudesse traduzir o processo penal que corria contra ele, o que só foi possível durante mutirão de entrevistas realizado pela Defensoria Pública de Mato Grosso Sul na prisão. Segundo a Defensoria Pública da União (DPU) este não é um caso isolado e é apenas um dos exemplos de violações de direitos pelos quais indígenas são submetidos no Brasil.
O caso foi relatado pela coordenadora do Grupo de Trabalho Povos Indígenas da DPU em Mato Grosso do Sul, Daniele Osório, durante audiência pública, na última terça-feira (7), na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais (CPOVOS), que abordou o tratamento de povos indígenas no contexto de encarceramento no país.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu, por duas vezes, o sistema carcerário brasileiro como um “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, um local de sistemáticas e contínuas violações de direitos humanos fundamentais. Mas, segundo a defensora pública indígena e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da Defensoria da Bahia, Aléssia Tuxá, quando quem ingressa nele é uma pessoa indígena, “esse espaço consegue superar seus limites de crueldade”.
Segundo ela, a violência começa já na porta da delegacia, quando, por exemplo, um cacique é orientado a retirar o cocar, um símbolo sagrado de liderança reconhecido por seu povo. De acordo com Aléssia, a prisão acaba sendo um instrumento para a tentativa de “silenciamento” da luta dos indígenas pelo território, por meio da criminalização de lideranças.
Para a presidente da CPOVOS, deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), um exemplo de vítima desse processo seria o Cacique Babau. “Ele dizia que quando tentaram matar ele, não queriam matar só seu corpo, já tinha uma narrativa de criminalização, já estavam colocando drogas também em seu carro, ‘vamos tentar matar sua história’”, lembrou.
Outras vezes, a pessoa indígena nem chega a ser reconhecida como tal. A defensora Aléssia Tuxá também denunciou que, frequentemente, por preconceito, racismo e falta de conhecimento por parte das autoridades policiais, estas “se veem no direito de dizer quem é ou não indígena, de dizer: ‘não posso constar aqui que você é indígena porque você não tem cara’”.
“Não dá para o cárcere, além de ser um espaço de cumprimento de pena em razão do cometimento de crimes, se tornar um espaço de crueldade, um espaço de apagamento da nossa cultura. A punição não pode ser mais do que a prisão e se tornar uma pena também o distanciamento da nossa cultura, que é isso que o nosso sistema penitenciário faz hoje”, defendeu Tuxá à Agência Pública.
Invisibilidade e falta de garantias
Relatos como esse acendem o alerta sobre uma possível subnotificação nos números de pessoas indígenas encarceradas no Brasil. O problema também foi levantado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). De acordo com o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, produzido pela organização com base em dados de 2021, o estado do Amazonas, que concentra a maior parte da população indígena do Brasil, informou, em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação, a existência de 49 indígenas presos, demonstrando, segundo o texto, “a extrema subnotificação e invisibilidade”.
Já em entrevistas realizadas com 230 indígenas na Penitenciária Estadual de Dourados, considerada a “maior prisão indígena do Brasil”, dado o número fora da curva, todos relataram que não tiveram acesso à tradução durante o processo criminal, tampouco houve a elaboração do laudo antropológico, documento que reúne informações pessoas e culturais, como costumes e tradições da comunidade indígena a qual a pessoa se vincula, para subsidiar o processo de responsabilização. “E o mais estarrecedor: alguns não sabiam por que estavam presos”, contou a defensora Daniele Osório.
De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SISDEPEN), no primeiro semestre de 2023, 1542 indígenas estavam no sistema prisional brasileiro. Destes, 183 (11,8%) estavam encarcerados na Penitenciária Estadual de Dourados. Embora Mato Grosso do Sul tenha a terceira maior população indígena do Brasil – 116,3 mil pessoas segundo o Censo de 2022 –, é o que mais encarcera povos originários no país.
Questionada pela Pública em relação às medidas adotadas para garantir o respeito às diferenças culturais dos povos indígenas durante a execução da pena, a direção da Penitenciária de Dourados informou que todos os presos passam “pelo processo de inclusão, pesquisa familiar, pelos atendimentos psicossociais, entrevista individualizada”, e que aqueles que se autodeclaram indígenas são colocados em “celas com seus pares”, respeitando a “sua individualidade, crença, costumes e idiomas”.
Em relação a ausência de tradutores relatada pelos entrevistados no mutirão da defensoria pública, a administração disse que um policial penal está realizando, atualmente, curso na língua guarani e que, nos pavilhões, “os presos, em casos emergenciais, fazem a tradução para melhor atendimento”.
A necessidade de lei específica para indígenas
Foi somente em 2019, com a criação da resolução 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que passou a existir uma orientação específica a respeito dos procedimentos para assegurar direitos das pessoas indígenas no âmbito do sistema criminal.
Uma das recomendações do texto é que o reconhecimento do indivíduo como pertencente a um povo originário deve ser feito por meio da autodeclaração. As informações sobre a etnia, a língua falada e o grau de conhecimento da língua portuguesa devem ser registradas no processo. Além disso, a pessoa indígena tem direito à presença de um intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo.
No entanto, essa resolução não tem força de lei. Assim, as garantias previstas são apenas orientações e sugestões para o poder judiciário, que não tem obrigatoriedade de segui-las. Por isso, os participantes da audiência pública defenderam a criação de uma legislação prisional específica para pessoas indígenas.
De acordo com a defensora Aléssia Tuxá, a lei é importante, primeiramente, para trazer visibilidade à questão. Além disso, esse tratamento diferenciado é necessário para assegurar o respeito às línguas, costumes e ritos dos indígenas encarcerados.
“A pessoa indígena que é submetida ao sistema penitenciário tem todos os direitos da pessoa não indígena que estão previstos na lei de execução penal. Mas mais do que isso, é preciso que esse espaço também seja um espaço de assegurar o nosso direito de ser quem nós somos”, explicou a defensora indígena.
Além disso, a prisão de uma pessoa indígena pode afetar toda uma comunidade, impactando na convivência diária e no exercício da cultura e da religiosidade. Foi o que apontou a advogada e representante do Cimi Viviane Balbuglio. “A gente já acompanhou situações em que pessoas que foram presas e retiradas do ritual do seu próprio povo, isso impactou como toda a comunidade se organizava”, relatou.
Antes de deixar a audiência, Célia Xakriabá garantiu que seu gabinete está à disposição para articular e pensar uma legislação prisional específica e propôs a criação de uma consulta pública sobre o tema. “É um tema muito caro para nós”.