DIREITOS HUMANOS

‘Diante da possibilidade de detenção, optaram pela execução’, avalia perito sobre mortes na Gamboa

Caso aconteceu em 2022 e ainda aguarda respostas na justiça. Perito Nelson Massini considera que objetivo dos PMs era eliminar as vítimas; A pesquisadora Amanda Quaresma observa lacunas no caso

Por JORNAL DO BRASIL com Alma Preta Jornalismo
[email protected]

Publicado em 16/07/2024 às 11:54

Alterado em 16/07/2024 às 11:54

Patrick Sapucaia (16), Cléverson Guimarães (22) e Alexandre Santos (20) foram mortos por policiais militares na comunidade da Gamboa, em Salvador Foto: Dindara Paz/Alma Preta

Dindara Paz - Após dois anos dos assassinatos de Alexandre dos Santos (20), Cléverson Guimarães (22) e Patrick Sapucaia (16) por policiais militares da Bahia, o caso conhecido como “Chacina da Gamboa”, em Salvador, ainda aguarda respostas na Justiça sobre a possível condenação dos PMs Tárcio Oliveira, Thiago Leon e Lucas dos Anjos. A Alma Preta convidou o perito legista Nelson Massini para avaliar a perícia e laudos produzidos do caso que aconteceu no dia 1º de março de 2022 na comunidade da Gamboa, região margeada pela Baía de Todos-os-Santos e uma das rotas turísticas da capital baiana.

O especialista, com mais de 40 anos de experiência na área pericial e criminológica, avalia que a ação dos policiais teve como escolha a morte dos jovens da comunidade.

“Constatei que o processo está devidamente instruído, com uma denúncia apresentada por cinco membros do Ministério Público da Bahia onde demonstra com clareza a ação equivocada dos policiais, que diante da possibilidade de detenção dos suspeitos optaram pela execução dos mesmos”, comenta o perito.

Os laudos de necrópsia e a perícia realizada no local do crime indicam que “o objetivo foi de eliminação das vítimas num local sem alternativa de fuga dos suspeitos”, diz o perito.

Os PMs Tárcio Oliveira, Thiago Leon e Lucas dos Anjos se tornaram réus por homicídio qualificado por motivo torpe. Em novembro de 2023, o 2º Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Salvador acatou a denúncia do Ministério Público contra os policiais e determinou o afastamento dos agentes das atividades ostensivas por 180 dias — o prazo terminou em maio deste ano.

Em nota enviada à reportagem, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) informou que os policiais permanecem afastados e que uma nova denúncia por fraude processual foi apresentada em fevereiro deste ano.

Para Nelson Massini, a justiça brasileira não tem dado resposta adequada para casos de letalidade policial, que, segundo ele, é uma prática que se repete em todo o país.

“Uma legislação processual repleta de alternativas defensivas e a demora do poder judiciário em dar a resposta que a sociedade deseja tem levado, na maioria desses casos, à impunidade e à descrença na justiça brasileira”, pontua o perito.

Contradições do caso Gamboa
O crime aconteceu quando Alexandre dos Santos, Cléverson Guimarães e Patrick Sapucaia voltavam de uma festa na região e foram surpreendidos por PMs que foram até o local após uma denúncia de tiroteio.

Durante o processo, os PMs alegaram troca de tiros com suspeitos. No entanto, uma denúncia apresentada pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) cita que os agentes alteraram a cena do crime para sustentar um falso confronto.

Com os jovens, os policiais disseram ter encontrado drogas como maconha, cocaína e crack, uma balança de precisão, dinheiro, três celulares e um relógio. O resultado do laudo pericial nas armas também indica que dois dos três armamentos que estariam com os jovens apresentavam dificuldade de manuseio para serem utilizados durante um confronto.

Já a terceira arma pertencia a um policial militar e teria sido furtada em 2017, conforme revelado pela Alma Preta.

O laudo de necrópsia feito nos corpos indica que nenhum dos jovens tinha partículas de chumbo nas mãos. O exame é essencial para identificar os resíduos produzidos por disparo de arma de fogo. Apesar do resultado, a perícia esclarece no processo que o exame não é, por si só, determinante para negar a contaminação por chumbo e que fatores externos podem interferir no achado, como ação do tempo, lavagem, período da coleta, entre outros.

No entanto, para a advogada e pesquisadora Amanda Quaresma esse tipo de ressalva presente nas perícias ajuda a reforçar a narrativa policial.

“Os peritos se preocupam muito em fazer essa ressalva para a questão da lavagem, mas não fazem essa ressalva inversa para dizer que esse tipo de exame já vem sendo refutado desde 1996 pela Associação Brasileira de Criminalística”, aponta.

Especializada em Direito Penal e Criminologia, Amanda ressalta que os resíduos podem durar até uma semana nas mãos já que a combustão produz micropartículas que “grudam” na pele.

“Independente se essa vítima foi para o hospital, aguardou a perícia e depois foi feito esse exame, isso não implica que o exame foi falseado por causa dessa demora”, justifica.

Além do chumbo, o procedimento possibilita identificar outros elementos químicos, como o antimônio e bário, conforme citam pesquisas do médico legista e advogado Genival França e do perito criminal Eraldo Rabello, cita a pesquisadora.

“Aqui na Bahia a gente só faz o teste para resíduo de disparo de chumbo e o chumbo está presente em materiais cotidianos. Se você for fazer esse exame na mão de um encanador, por exemplo, ou de um eletricista, muito possivelmente vai dar positivo e não necessariamente essa pessoa teve contato ou fez um disparo de arma de fogo”, argumenta.

O que analisar em supostos confrontos?
Com os jovens, os policiais disseram ter encontrado um revólver calibre .38, uma pistola semiautomática calibre .40 e outra pistola calibre .380. A pesquisadora salienta que esse tipo de armamento é muito mais provável de produzir chumbo do que as armas utilizadas pela polícia.

“O revólver .38, esse modelo mais antigo que é mais utilizado pelas organizações criminosas e que é de mais fácil acesso, mais barato, deixa muito mais resíduo de pólvora do que essas armas mais modernas que são utilizadas pela polícia”, avalia. “Então, se essa versão de uma troca de tiros fosse verdade, essa arma que eles alegam terem encontrado com essas vítimas deixaria muito mais vestígios e na verdade não existe nenhum”, completa.

Autora do livro “Os corpos gritam para ninguém: uma análise dos laudos periciais da chacina do Cabula“, caso que deixou 12 mortos por policiais militares em Salvador, Amanda Quaresma chama atenção para fatores que devem ser levados em consideração pela perícia ao analisar supostos confrontos.

A quantidade de feridas nos policiais e nas vítimas, a trajetória das balas nos corpos ou nos locais onde ocorreram supostos confrontos, se houve a preservação do local do crime e a presença de tiros letais, como na cabeça e coração, são citados como elementos possíveis de serem observados.

“Na Chacina do Cabula muitas das vítimas têm tiros no ânus, no pênis, nos testículos. Tem uma vítima que tem uma tatuagem de Jesus Cristo e ele recebeu um tiro no meio da testa de Jesus Cristo na tatuagem. É um tiro que demonstra certa crueldade de forma proposital”.

No livro, fruto de uma pesquisa feita durante o mestrado, Amanda identificou que os laudos produzidos pela perícia não demonstram as narrativas das vítimas, o que corrobora para a versão de suposto confronto.

“Quando os policiais identificam que essa é uma versão de sucesso para conseguir um arquivamento, eles continuam nessa mesma versão sem narrar, de fato, o que aconteceu nessas investidas e isso acaba contribuindo para um sistema de injustiça”, completa. 

 

Deixe seu comentário