Carta histórica de Esperança Garcia desaparece e intriga pesquisadores
Por Luiz Claudio Ferreira - Era só uma folha gasta pelo tempo com um manuscrito. Sem classificação ou identificação do que se tratava, o papel estava misturado a outros documentos reunidos em caixas nas estantes do Arquivo Público do Piauí. O achado do antropólogo Luiz Mott, em 1979 (há 45 anos), ocorreu enquanto ele encarafunchava pastas que poderiam ajudá-lo em sua pesquisa sobre o período colonial. Ao ler o que estava escrito, naquela carta com a data de 6 de setembro de 1770, o pesquisador arregalou os olhos.
Ele descobriu a história de Esperança Garcia, uma mulher escravizada no século 18 que escreveu de próprio punho denúncias e reivindicações, mais de um século antes da Abolição da Escravatura.
Um problema é que o documento original está desaparecido e historiadores entendem que houve descuido com uma carta de valor imensurável para a história do País. De toda forma, com os registros que ficaram, a carta traz recados fortes do passado para o presente da luta das pessoas negras no Brasil. Mott sabia que estava diante de uma preciosidade histórica. Uma mulher escravizada que usava a escrita para denunciar. "Quando eu encontrei esse documento, eu vibrei e me dei conta de que era algo inédito. Não me lembro de ter encontrado manuscritos assinados por pessoas escravizadas", afirmou Mott em entrevista à Agência Brasil.
O professor se deu conta que não era um ofício de alguma autoridade com uma linguagem diferente, mas uma carta de uma escrava denunciando os maus tratos para o governador da época e para o administrador das fazendas.
'Passo muito mal'
"Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal". Esse é um dos trechos transcritos da carta. Mott, na ocasião, transcreveu letra por letra. Não havia como copiar nem fotografar.
O pesquisador recorda que colocou a carta dentro de um envelope grande e pardo e lembra ainda ter anotado para que o arquivo cuidasse bem da joia histórica. "A Esperança Garcia se tornou famosa. Foi feita até uma estátua. Depois, as pessoas disseram que a carta tinha desaparecido. Ninguém sabia onde estava. Chegaram a dizer que ela tinha sido enviada para Portugal. Não tenho a menor ideia de onde está".
Outro historiador, o professor Mairton Celestino da Silva, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), esteve no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e também não conseguiu localizar o documento.
Segundo a assessoria de imprensa do governo do Piaui, em contato com a reportagem, existe uma mobilização para tentar encontrar a carta original, que foi extraviada "há muito tempo" já que teria sido arquivada de uma forma errada. Por esse motivo, os profissionais do arquivo público ainda teriam conseguido achar.
A comunicação do governo apontou que, na década de 90, havia uma política de liberação do documento para eventos. Em uma dessas exposições externas, o documento teria sido extraviado.
Primeira advogada
O documento escrito por Esperança Garcia garantiu a ela o reconhecimento como primeira advogada brasileira, naquela que seria uma espécie de pedido de habeas corpus movido pela trabalhadora. A decisão da homenagem foi de 2022 pelo Conselho Pleno da Ordem dos Advogados Brasil. Leia mais no O professor da UFPI reflete que Esperança firmou-se como sinônimo de bravura e de luta contra as desigualdades, incluindo as opressões que cercam essas mulheres marcadamente negras. Ele espera que seja cada vez mais divulgado nos livros didáticos em sala de aula sobre quem foi essa mulher que utilizou a palavra para não deixar passar o absurdo. (com Agência Brasil)