INFORME JB
Depois da Lagosta, Brasil e França brigam por carne
Por GILBERTO MENEZES CÔRTES
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Publicado em 26/11/2024 às 19:51
Alterado em 26/11/2024 às 19:51
As desculpas, demoradas e meio esfarrapadas, do CEO Global do francês Carrefour, Alexandre Bompard, ao ministro da Agricultura Pecuária e Abastecimento, Carlos Fávaro, ratificando a qualidade da carne brasileira (que semana passada classificara como não cumprindo padrões sanitários, em discurso aos produtores franceses), pode ajudar a suspender o boicote de fornecimento dos frigoríficos brasileiros aos supermercados Carrefour e à rede Atacadão, do mesmo grupo francês.
No entanto, não eliminaram os estragos à credibilidade à exportação das carnes brasileiras para a França e a Europa. Vá lá que as compras da França mal chegam a 1% (o maior mercado brasileiro é a China, que leva mais da metade da carne brasileira, seguido pelos Estados Unidos).
Um mercado de US$ 11 bilhões
Mas, todo o esforço brasileiro feito nos últimos 30 anos, de controle zootécnico do rebanho bovino (e suíno), com a erradicação da febre aftosa e da peste suína, bem como o rastreamento da origem dos animais abatidos, para comprovar que não vieram de áreas de desmatamento ilegal, pode ser comprometido com a leviandade de Bompard.
As exportações de carne bovina do Brasil somam mais de US$ 11 bilhões, e os ruídos das primeiras acusações às carnes do Mercosul não chegaram a ser apagados com o desmentido de ontem.
Uma dor de cotovelo
No fundo, os franceses, que são os maiores produtores agrícolas da União Europeia, não se conformam com a pujança brasileira na produção de milho e soja no Centro-Oeste e no Paraná. Transformados em carne de frango em até 45 dias a dupla desbancou os EUA e a França da liderança e do 2º lugar nas exportações mundiais de carnes de aves.
E a dor de cotovelo aumentou com a reconhecida excelência da carne bovina brasileira. Sobretudo com os cruzamentos do rústico Nelore, de origem indiana, com animais da raça Charolais, Blonde D’Aquitaine ou Limonsin, que geraram animais precoces, rústicos e com grande ganho de peso, tornando o Brasil o maior exportador de carne bovina do mundo.
A lagosta foi um prato indigesto
Por muito menos, no começo dos anos 60, Brasil e França quase entraram em guerra na disputa pela lagosta, quando barcos de pesca franceses descumpriram um acordo formal entre os dois países e abusaram de invadir as águas territoriais brasileiras no Nordeste para pescar nossas lagostas.
Após perder acesso à pesca da lagosta em várias colônias da África que se tornaram independentes, os pescadores franceses da região de Camaret (Noroeste da França, no oceano Atlântico), vieram pescar em águas brasileiras. Os barcos mais sofisticados tiraram mercado dos brasileiros, que reclamaram.
O jeitinho francês
Os franceses enviaram uma delegação a Recife para realizar pesquisas sobre viveiros de lagosta. Em março de 1961 (governo Jânio Quadros), a autorização foi emitida, com validade de 180 dias, limitada a três embarcações francesas. Com fiscalização de representantes da Marinha brasileira em cada barco.
Mas logo os relatórios dos representantes da Marinha indicaram que, em vez de três, eram quatro os pesqueiros em ação. Mas não faziam pesquisas. Os quatro barcos estavam pescando de maneira descontrolada e pretendiam levar as lagostas embora para a Europa.
Depois da renúncia de Jânio (25 de agosto), já no governo do vice, João Goulart, a França pediu, em novembro, nova autorização. Que foi concedida. Mas os franceses seguiram cometendo a pesca ilegal e acabaram expulsos do território marítimo brasileiro. O limite de águas territoriais era de 12 milhas (22 milhas náuticas). A partir dali embarcações consideradas ilegais passaram a ser apreendidas e logo soltas, sem maiores consequências.
Guerra diplomática
Ao longo de 1962, no governo parlamentarista, a operação de pega e solta acabou gerando uma guerra diplomática entre os dois países. O Brasil alegava que as lagostas estavam na zona econômica exclusiva do país, enquanto a França se apoiava na Convenção de Genebra de 1958, que estabelecera diretrizes para a pesca em alto-mar, embora nenhum dos dois países houvesse assinado tal convenção.
O pirão que acompanharia a lagosta azedou logo no começo do ano quando, a corveta brasileira Ipiranga apreendeu o navio pesqueiro Cassiopée, a 10 milhas da costa do Nordeste. Nas negociações para se estabelecer uma forma de “modus vivendi” sobre o crustáceo, a França argumentava que a lagosta se deslocava de um lado para o outro dando saltos e, portanto, deveria ser considerada como peixe e não um recurso da plataforma continental.
Já o comandante Paulo de Castro, da Marinha do Brasil, ironizou a argumentação francesa: “Por analogia, se lagosta é peixe porque se desloca dando saltos, então o canguru é uma ave”.
Resposta brasileira
Como os barcos pesqueiros franceses viessem cada vez mais atrás das lagostas da costa brasileira, o almirante Arnoldo Toscano, atendendo às denúncias dos pescadores pernambucanos, enviou corvetas da Marinha para a região, com o objetivo de escoltar os franceses para fora do território brasileiro.
O troco francês
Mas, ao serem abordados pelos navios de guerra brasileiros de forma pacífica, em vez de cessarem suas atividades ilegais, os pescadores franceses apelaram para o governo de Paris e para a Marinha Francesa, que os atendeu.
A França era governada pelo general Charles de Gaulle, herói da 2ª Guerra e nacionalista ferrenho. Ferido em seus brios, De Gaulle enviou contratorpedeiros (destroieres) e 1 porta-aviões da classe Clemenceau ao oceano Atlântico, para escoltar os barcos pesqueiros em suas autuações inconcessas dos navios de guerra brasileiros.
O incidente
Antes de desconhecerem os efeitos do El Niño, a temperatura das águas do Atlântico aqueceu, quando, em 11 de fevereiro de 1963, uma Força-Tarefa comandada pelo porta-aviões Clemenceau partiu de Toulon, na França, juntamente com 3 contratorpedeiros, 5 fragatas, 1 cruzador, 1 navio-tanque e 1 navio de aviso. A explicação do governo francês foi que era apenas mais uma missão de rotina no oceano Atlântico.
Em 21 de fevereiro, os navios chegaram a Dacar, Senegal e, posteriormente, seguiram para Abidjan, na Costa do Marfim (duas ex-colônias).
Belonave desgarrada
Mas uma das escoltas do Clemenceau tomou rumo diferente. O Tartu, um dos contratorpedeiros, seguiu sozinho para a costa brasileira. Ao tomar conhecimento do fato, o Estado-Maior da Armada iniciou a busca da belonave. estações radiogoniométricas de Alta Frequência em Recife e na Bahia passaram a rastrear as emissões eletromagnéticas de todos os navios franceses navegando no Atlântico. Um avião B-17 brasileiro fotografou o contratorpedeiro Tartu.
O governo brasileiro respondeu mobilizando um grande contingente da Marinha e Força Aérea. Mas a literal preparação para guerra, no dia 22 de fevereiro, coincidia com a véspera do carnaval, o que tornou complexo o recrutamento. Para complicar mais, os Estados Unidos interferiram, sublinhando que as licenças para o equipamento americano utilizado pela Marinha– como os bombardeiros B-17 – não permitiam seu uso contra adversários.
Uma guerra no Carnaval
Dia 26 de fevereiro, um P-15 da Força Aérea Brasileira (FAB), patrulhando longe da costa, detectou no radar um navio de grandes proporções rumando em direção a Fernando de Noronha. No dia seguinte, um bombardeiro B-17 adaptado para reconhecimento, também da FAB, fez o primeiro reconhecimento fotográfico da embarcação francesa que, a partir dali, receberia constantes visitas diurnas e noturnas por aeronaves militares brasileiras.
Duas aeronaves voaram baixo (em 100 pés de altitude – cerca de 30 metros), em formação aberta mas com todas as luzes apagadas e silêncio rádio total. Até que, praticamente sobre o contratorpedeiro, acionaram tudo que pudesse iluminá-lo. Foi uma surpresa total, e homens puderam ser vistos correndo pelo convés, como se estivessem assumindo postos de combate.
Enquanto isso, do Rio de Janeiro, uma grande força-tarefa de navios de guerra partiu para a capital de Pernambuco, cujas guarnições locais estavam sem combustíveis e munições. Em três dias, a força chegou em Recife, engrossando o contingente que veio de outras regiões do país.
Reunida, a frota partiu no mesmo dia para alto-mar, com grande expectativa por parte da imprensa e da população quanto ao encontro dos navios brasileiros com o francês.
Navegando no escuro
Nos navios brasileiros, a tensão era grande. As embarcações navegavam no escuro e os operadores de radar estavam 100% concentrados na procura do navio inimigo. Dia 27 de fevereiro, às 10 da manhã, o contratorpedeiro Paraná estabeleceu contato radar com um alvo na superfície, com as características do Tartu. Estava a 13 quilômetros de distância, com seis pequenos barcos pesqueiros parados ao lado dele.
Mas o navio brasileiro estava acompanhado de escolta de 4 contratorpedeiros, 1 corveta e 1 submarino. A frota acompanhou os navios franceses por algum tempo e monitoraram as frequências de rádio, depois se afastaram. A partir da localização, foi estabelecida escala de patrulha para manter sempre um navio próximo dos pesqueiros e outro à distância, podendo intervir quando necessário, se invadissem o mar territorial brasileiro.
Os franceses, para assegurar a posição do Tartu, deslocaram para a região o contratorpedeiro Paul Gaufeny, totalizando 2 navios de guerra e 6 barcos de pesca.
EUA e ONU em cena
Nesse meio tempo, as conversações diplomáticas e a interferência dos Estados Unidos e da ONU procuravam encerrar o iminente conflito e, como decorrência, a declaração de guerra. A volta dos navios pesqueiros e dos dois contratorpedeiros para a França foi o sinal que o conflito havia acabado, com um último sinal, irônico e bem-humorado, de “boa viagem” emitido do contratorpedeiro Paraná ao navio Paul Gaufeny.
Em 10 de março de 1963, os franceses retiraram os navios da costa, mas a guerra diplomática ainda não tinha cessado. Antes que a situação fosse concluída, veio o golpe militar de 1º de abril de 2964.
De Gaulle e Castelo selam a paz
A tensão entre o Brasil e a França seria esfriada em outubro de 1964 com uma visita do presidente francês, Charles de Gaulle, ao marechal Castelo Branco, primeiro governante do regime militar. Ambos serviram na 2ª guerra.
Em 10 de dezembro de 1964, finalmente, os dois países chegariam a uma solução diplomática: um acordo permitindo a exploração de lagosta por navios franceses, em quantidade e tempo limitados, repartindo seus lucros.
Mar de duzentas milhas
Mas o risco da guerra entre os dois países e o temor de novas disputas por peixes e crustáceos e riquezas da plataforma marítima brasileira (em 1967), foram descobertos indícios de petróleo e gás na costa de Sergipe-Alagoas; levou os militares a estudarem a ampliação do domínio territorial brasileiro.
Em março de 1970, o general Garrastazu Médici anunciou a adoção pelo Brasil do conceito territorial de mar de duzentas milhas náuticas (370 quilômetros).
Sem ele, tanto o petróleo da Bacia de Santos, como os poços gigantescos do pré-sal na Bacia de Santos, quanto os campos da Bacia de Pelotas, ao Sul, e do Amapá/Oiapoque, ao Norte, poderiam ser exploradas por potências estrangeiras.