JUSTIÇA

Promotora e juíza em Vara de Família no Rio culpam mãe vítima de violência doméstica

Ao comentar sobre agressões do ex, que tenta reversão de guarda de criança dentro da Lei de Alienação Parental, representante do MP disse que a mulher tem tanta culpa quanto o homem porque se "deixou" agredir

Por GABRIEL MANSUR
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Publicado em 29/07/2023 às 12:40

Alterado em 29/07/2023 às 13:13

Juíza minimizou acusações de violência doméstica, assim como promotora Foto: Divulgação

Uma mãe vítima de violência doméstica ouviu da promotora de justiça Izabella Figueira, em uma audiência na 9ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, onde tramita o processo de guarda do seu filho, que ela também era culpada por apanhar do ex-marido. "Os dois têm culpa. A culpa é dos dois. Um permitiu, o outro deixou, foi permissivo. A culpa sempre é dos dois, a culpa nunca é de um", ressaltou Izabella num ato de culpabilização da vítima. Os áudios estarrecedores constam em conversas de setembro de 2020, entre Figueira e a juíza Regina Helena Fábregas Ferreira, e foram revelados pelo The Intercept na quinta-feira (27).

A criança que motivou a briga judicial tinha três anos quando a mãe pediu medidas protetivas para as visitas paternas, já que se sentia ameaçada e não segura para deixar o filho, autista, sozinho com o agressor. A mulher havia relatado, logo no início da sessão, os casos de violência que teriam acontecido desde o início de seu relacionamento com o "companheiro", em 2014, além das perseguições que sofria após a separação. Mesmo assim, ouviu também da magistrada que uma mulher pode “apanhar [do marido] mas ele pode ser um excelente pai”.

Quase cinco meses depois, em 2 de fevereiro de 2021, Andressa foi novamente constrangida pela promotora. “A sua cliente escolheu o senhor Júlio (nome fictício) para ser pai do filho dela”, afirmou. A promotora se referia aos episódios de agressão que a mãe havia denunciado e cujas medidas protetivas estariam "atrapalhando" o convívio do denunciado com o filho. Dentro dessa alegação, a mãe foi acusada de ser "alienadora", ameaçada de perder a guarda pela Lei de Alienação Parental.

A vítima denunciou as juízas Ferreira e Espírito Santos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por “extrema parcialidade” e descuido com o seu caso, mas o ministro Luiz Fux determinou o arquivamento da ação, com a justificativa de que utilizou uma via inadequada. Em vez de Arguição de Suspeição e Impedimento, a denunciante deveria ter pedido abertura de Processo Administrativo Disciplinar. Ela entrou com o novo pedido em março de 2023, dessa vez destacando violência institucional, psicológica e abuso de autoridade. Agora, aguarda resposta do CNJ.

A promotora Figueira também foi denunciada ao Conselho Nacional do Ministério Público. Em julho deste ano, o corregedor Oswaldo D’Albuquerque determinou “instauração de reclamação disciplinar visando apurar os fatos”.

Procurada por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Rio de Janeiro, a promotora disse que todos os processos de vara de família correm sob segredo de justiça. “Assim, infelizmente não poderei prestar qualquer esclarecimento”.

A reportagem também procurou as juízas Regina Helena Fábregas Ferreira e Leise Rodrigues de Lima Espírito Santo, que conduzia a audiência, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informou, em nota, que as juízas não se manifestariam, pois o processo tramita em segredo de justiça, e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe membros do Judiciário de falarem sobre casos pendentes de julgamento.

Violência

Segundo a mãe, a criança seria fruto de um estupro. A informação, contudo, não constava nos autos do processo na data da audiência. Neles, via-se que a genitora já havia denunciado “relação sexual muitas vezes não consentida”, mas ela não deixara claro que a gravidez teria ocorrido por causa de um estupro.

O casal tinha pouco mais de um ano de relacionamento quando ela foi à delegacia pela primeira vez, em novembro de 2015, registrar queixa por ameaça, lesão corporal e injúria. De acordo com o boletim de ocorrência, ele a teria chamado de vagabunda e prometido arrebentá-la se a visse “com outro na rua”.

As agressões continuaram anos a fio. Em 2016, uma vizinha que morava no apartamento de baixo denunciou que “de tempos em tempos” se assustava com o barulho de coisas quebrando. “Parecia que ia furar o teto e, a qualquer momento, as coisas cairiam na nossa cabeça. Eu estava grávida e foi muito ruim ouvir aquela loucura”, disse. Os vizinhos chegaram a chamar a polícia em uma das ocasiões, mas a mulher, "por ter muito medo do homem", disse que estava tudo bem.

Em um e-mail de fevereiro de 2016, anexado ao processo, Júlio admitiu suas atitudes violentas. Ele havia quebrado várias coisas do apartamento e jogado uma lata de verniz em direção à Andressa, quase atingindo seu olho.

Uma amiga de mais de 20 anos, que pediu para não ser identificada, disse que a mulher rompeu o silêncio sobre o que sofria na relação depois do estupro que conta ter acontecido em 2016. Segundo essa amiga, a mulher entrou em contato com ela e desabafou tudo que sofrera calada até então. Com a gravidez, fruto do estupro, os dois reataram o relacionamento e casaram em setembro do mesmo ano, mas a violência continuou.

A separação definitiva aconteceu em 2019. Segundo Andressa relatou no processo, ela teria descoberto ser violentada enquanto estava dormindo, o que lhe deu forças para tomar a decisão após quatro anos de um relacionamento de aparências. Outro motivo, segundo ela ainda mais forte, foi descobrir que Júlio levava pessoas para usar drogas dentro de casa, na frente do filho.

Andressa entrou com o pedido de guarda definitiva e afastamento do filho do ex em julho de 2019. Foi nesse processo que aconteceram as audiências em que ocorreram as agressões psicológicas. A vítima já tinha conseguido uma medida protetiva de urgência por violência doméstica. A decisão era de distanciamento físico e eletrônico por 90 dias, mas isso valia apenas para ela, e as visitas de Júlio à criança foram mantidas.

Ele chegou a ser preso em outubro de 2019, após denúncia de que continuava perseguindo Andressa, tanto na escola do filho, quanto por mensagens. Foi solto 72 dias depois, com tornozeleira eletrônica. Em fevereiro de 2020, contudo, foi absolvido da acusação de violência doméstica.

Sem medida protetiva contra si e livre das denúncias criminais, Júlio alegou estar sendo vítima de alienação parental, porque a ex não entrega o filho para as vistas paternas. Em junho de 2023, ele pediu inversão da guarda “para que sejam restabelecidos os laços paterno filial, que vem sendo destruídos por um capricho”.

A juíza Ferreira não atendeu ao pedido. Ela justificou que é necessário analisar melhor a situação “antes de aplicação de medida mais drástica” – mas o processo ainda não acabou.

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