ARTIGOS
Aldo Rebelo e a demonização do jornalismo
Por RUBENS VALENTE
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Publicado em 16/05/2023 às 10:08
Alterado em 16/05/2023 às 10:08
No último dia 21, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo escreveu em seu perfil no Twitter que “o Brasil não está na OTAN, mas a OTAN está no Brasil, principalmente na Amazônia”. Marcou a jornalista multipremiada Eliane Brum e o site jornalístico Sumaúma, que ela fundou em setembro de 2022 ao lado do também premiado Jonathan Watts, britânico, editor de meio ambiente global do The Guardian, um dos principais jornais do mundo, do qual foi correspondente no Japão, na China e no Brasil. Rebelo compartilhou uma publicação que trazia uma fotografia de Watts e dizia que ele “promove pauta que os USA [Estados Unidos] quer aqui”.
Brum e Watts são dois jornalistas exemplares, amplamente reconhecidos pelos seus colegas no Brasil como sérios, íntegros, honestos, com uma preocupação genuína sobre o futuro da Amazônia e uma longa folha de serviços prestados ao jornalismo e ao país. A aliança militar OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) não “está” e nunca esteve no Brasil, que não figura entre seus 31 países-membros. Rebelo apresentou uma típica fake news. Nesse momento é particularmente nefasta porque a aproximação da Ucrânia com a OTAN foi usada por Vladimir Putin como justificativa para a invasão do país vizinho em 2022. Pelo menos um jornalista, Evan Gershkovich, repórter do The Wall Street Journal, já foi preso pelo regime de Putin sob acusação de “espionagem”, imputação imediatamente refutada pelo jornal, que a chamou de “categoricamente falsa”.
Por acaso Rebelo sugere que os fundadores da Sumaúma merecem tratamento semelhante? A temeridade da sua mensagem é ainda maior quando lembramos que Brum e Watts residem no interior do Pará, onde produzem textos e coordenam reportagens sensíveis sobre Amazônia, povos indígenas, meio ambiente e políticas públicas. Tudo o que um político responsável não deve fazer em relação a eles é marcá-los sob pretexto de qualquer teoria conspiratória.
Dias antes, Rebelo havia sido o foco de uma reportagem de Sumaúma intitulada “O agro é Aldo: o ex-comunista articula na Amazônia cruzada contra a agenda ambiental de Lula”. O texto parece ter desagradado Rebelo, mas no geral é uma descrição objetiva, sem ofensas ou críticas contundentes, em um ou outro ponto suave, sobre visitas e palestras que o ex-ministro tem feito em municípios da Amazônia.
A perseguição do ex-ministro aos jornalistas que escrevem sobre a Amazônia não se esgotou na postagem no Twitter. Ela é mais ampla e pretensamente elaborada. Em um texto publicado no final de abril no jornal “O Liberal”, de Belém (PA), Rebelo denunciou um suposto — na verdade, uma ficção — “estado paralelo dirigido pelas organizações não governamentais internacionais na Amazônia” que afetaria “a segurança nacional”. O “estado paralelo” das ONGs, diz Rebelo, é protegido por uma “couraça financeira”, “rios de dólares e euros” que “organizam o sofisticado esquema de comunicação para o qual são recrutados jornalistas da mídia tradicional, seduzidos pela derrama do dinheiro farto e fácil”.
Numa fala maniqueísta típica dos anos da Guerra Fria, Rebelo se voltou contra o governo Lula ao dizer que “setores do próprio estado nacional se voltam contra o interesse nacional a serviço de potências externas, concorrentes ou hostis”. Acusou nominalmente “o Ministério do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos, das Populações Indígenas [sic], o Ibama, a Funai, o Ministério Público, com as honrosas exceções de sempre”. Assim, Rebelo ataca as políticas públicas que levaram o país às quedas históricas de desmatamento nos anos 2000 e que firmaram o país no cenário mundial como voz autorizada na questão ambiental. Com sua retórica conspiratória, por exemplo ao chamar históricos aliados do Brasil de “concorrentes ou hostis”, Rebelo se iguala ao ex-chanceler de Bolsonaro, Ernesto Araújo, um adversário do multilateralismo. O resultado nós já sabemos qual foi – explosão do desmatamento, o genocídio Yanomami e o humilhante papel do Brasil como “anão diplomático”.
Diferentemente de Araújo, contudo, Rebelo tem uma longa trajetória na política, em especial na esquerda, e isso reforça o motivo pelo qual seus recentes ataques a jornalistas devem merecer grande atenção, muita preocupação e enorme repúdio das entidades jornalísticas. Sob o verniz artificial de “esquerda”, o discurso de Rebelo tem sido apropriado pelas diversas forças reacionárias em Estados amazônicos, em especial entre garimpeiros e agronegociadores, que se opõem a lideranças indígenas e ambientalistas contrários à destruição ambiental na região.
O discurso conspiratório de Rebelo se espalha como labaredas de incêndio em grupos de Whatsapp, como os de garimpeiros que a Agência Pública acompanha desde o início de janeiro. Vídeos, reportagens e áudios de Rebelo têm sido recebidos com aclamação e admiração pelos participantes destes grupos. “Olha que bom, gosto desse ex mineiro [ministro] Aldo Rebelo, ele defende a legalização e defende a Amazônia. É uma força pro grupo garimpeiro”, escreveu um garimpeiro do Pará.
Rebelo tem feito uma série de palestras para políticos e “produtores rurais” cujo financiamento não fica claro em suas páginas nas redes sociais. Em plena operação de emergência de socorro aos Yanomami – vale dizer, 570 crianças morreram de causas evitáveis durante o governo Bolsonaro devido à invasão garimpeira –, e bem no Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril, Rebelo participou de um evento na Assembleia Legislativa que foi prestigiado pelos porta-vozes dos garimpeiros. Ele recebeu da Assembleia o título de “cidadão benemérito”, chamado de “mais alta honraria” da Casa. Os vereadores de Boa Vista (RR) também lhe concederam o título de “cidadão boa-vistense e uma medalha de honra ao mérito Rio Branco”.
No dia 9 de maio, Rebelo recebeu na Câmara de Vereadores de Sinop (MT), um dos principais redutos eleitorais de Bolsonaro em Mato Grosso, o título de “cidadão honorário”. Em Marcelândia (MT), deu uma palestra “para os produtores rurais do município e região sobre produção e alimentos e meio ambiente”. No dia 6, esteve em Castelo dos Sonhos (MT). No dia 4, em Novo Progresso (PA), regiões que registram altos índices de desmatamento. Nos dois eventos, falou “sobre Amazônia, Soberania, Desenvolvimento e Meio Ambiente”, assim mesmo, em letras maiúsculas.
Em um vídeo gravado na região, Rebelo aparece dizendo: “Em primeiro lugar, [quero] prestar minha solidariedade à população da Amazônia, que tem sido vítima de injustiça. A Amazônia que não tem sido compreendida”. Segundo ele, “aqui uma árvore tem muito mais direitos do que um cidadão”. Listou “as riquezas” da Amazônia, como “a maior biodiversidade do mundo”, os maiores rios, “o futuro” do Brasil está “na biodiversidade da Amazônia”.
É um discurso profundamente contraditório, para dizer o mínimo. Não parece ocorrer a Rebelo que a Amazônia só tem “a maior biodiversidade do mundo” justamente graças às políticas ambientalistas e inclusive ao jornalismo que denuncia a sua destruição. Os mesmos setores que ele ataca. Rebelo precisa se decidir: ou defende a biodiversidade ou acusa os defensores da biodiversidade.
O Aldo Rebelo “amazônico” é uma invenção recente. Até 2010, quando se tornou, na Câmara dos Deputados, o relator do Código Florestal, que o aproximou do agronegócio, não se tem notícia de qualquer iniciativa notável e específica de Rebelo sobre a Amazônia. Diz-se “nacionalista”. Nos anos 1990 queria expulsar os “estrangeirismos” da língua portuguesa.
Nascido em Alagoas e militante do movimento estudantil, Rebelo se mudou para São Paulo nos anos 1970, onde foi eleito, aos 21 anos de idade, em 1977, membro da direção nacional do PC do B (Partido Comunista do Brasil), então na clandestinidade. Logo depois presidiu a UNE (União Nacional dos Estudantes). Em São Paulo construiu toda sua extensa carreira política. Foi vereador, várias vezes deputado federal (presidiu a Câmara dos Deputados por quase dois anos, de 2005 a 2007) e ministro de três pastas diferentes no governo de Dilma Rousseff (a saber: Esportes, Ciência, Tecnologia e Inovação e Defesa) e da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do qual também foi líder na Câmara, em 2003.
Nos seus ataques ao jornalismo, Rebelo faz fileira com o que de pior foi produzido pelo bolsonarismo em termos de sentimento anti-imprensa. A comparação não é forçada, pois Rebelo traduz fielmente o que os bolsonaristas defendem sobre o destino da Amazônia e dos povos indígenas. Isso também explica todas as condecorações que Rebelo tem recebido. Como se diz no interior do Brasil, papagaio que acompanha joão-de-barro vira ajudante de pedreiro.
Rubens Valente é colunista da Agência Pública