ARTIGOS
No porão das marcas reluzentes
Por MARINA AMARAL
Publicado em 07/07/2023 às 10:25
Alterado em 07/07/2023 às 10:25
Foi o assunto da semana como queriam os marqueteiros da Volks. De posts emocionados a indignados, a ressurreição de Elis Regina ao lado da filha, Maria Rita, ao som da música de Belchior, tomou as redes, onde se debateu do deep fake à ética da família de Elis, como registrou o Núcleo.
Alguns, como eu, estranharam sobretudo a escolha da música de Belchior – expressão da angústia de uma geração de brasileiros derrotada pela ditadura –, que vai no sentido oposto à nostalgia evocada pelo vídeo.
Soou quase como escárnio, tendo em vista a conhecida ligação da Volkswagen com os porões da ditadura militar, de tal modo documentada que a empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Ministério Público do Trabalho, comprometendo-se a pagar cerca de R$ 36 milhões a vítimas e seus familiares na ditadura.
Mas, como tudo que se refere aos crimes cometidos durante esse período, não houve condenação da empresa na Justiça. Parte dos recursos devidos pela Volks foi destinada a projetos de pesquisa pela memória e verdade. Entre eles, o projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, coordenado por Edson Teles, do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com participação de pesquisadores de 55 universidades.
A partir desse trabalho sobre dez empresas, listadas pelo Ministério Público, a Pública produziu reportagens investigativas que trouxeram à luz a colaboração direta com a ditadura, não apenas das estatais, mas de empresas privadas, muito conhecidas dos consumidores brasileiros como Arroz Tio João, Fiat, Aracruz Celulose.
Em alguns casos, a ligação das empresas com a ditadura já era conhecida, mas os pesquisadores reuniram documentação, fizeram entrevistas e tomaram depoimentos que detalham a natureza dessa cooperação, o que é essencial para que o país conheça sua história e as empresas assumam a responsabilidade diante da sociedade pelas atitudes tomadas, quase sempre clandestinas.
Nesta segunda-feira passada, a última reportagem da série trouxe novos personagens, documentos e depoimentos que trazem novas dimensões da ligação de um dos maiores jornais do país, a Folha de S.Paulo, com o aparelho repressivo da ditadura. A colaboração já havia sido revelada em 2004 pela pesquisadora Beatriz Kushnir, a primeira a mostrar, por exemplo, que as peruas do jornal eram utilizadas pela Oban – Operação Bandeirantes –, que prendeu ilegalmente, torturou e matou militantes políticos, inclusive jornalistas da própria Folha, com ajuda da empresa.
Entre as novidades, está o depoimento do ex-agente de informações do Doi-Codi Marival Chaves do Canto, que afirmou que a direção do jornal tinha ciência de que as peruas eram usadas também como cobertura em emboscadas contra militantes políticos, o que a Folha sempre negou – e continua negando. A contratação de policiais da repressão pelo jornal – pelo menos 11 – também ganhou novos contornos com a revelação de que o delegado Sérgio Fleury, conhecido como um dos piores torturadores e assassinos dos porões da ditadura, fazia parte da equipe de segurança do jornal.
Além de analisar os documentos reunidos pelos pesquisadores e entrevistar testemunhas e vítimas, o repórter Vasconcelo Quadros, o nosso Vasco, também teve acesso a documentos encontrados no Arquivo Nacional que mostram contribuições de Octavio Frias de Oliveira ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), entidade criada para conspirar contra o governo democrático de João Goulart.
Na semana passada, nosso repórter ligou para o jornal para informar sobre a reportagem e pedir a posição da empresa. A Folha enviou uma resposta protocolar e no domingo publicou discretamente, na edição impressa do jornal, uma matéria antecipando que a pesquisa da Unifesp seria publicada. Não avançou nenhum passo nas justificativas que vem colecionando desde 2004 – tanto é que a reportagem se vale de um texto escrito em 2005 sobre a participação do jornal na ditadura.
É lamentável que uma empresa de jornalismo, que vive a cobrar comportamentos éticos de governos e políticos, como cabe aos jornalistas, não tenha até agora abraçado a transparência no que se refere ao seu próprio passado, saltando de aliada da ditadura para porta-voz da campanha Diretas-Já com esqueletos guardados no armário.
Retratar-se esquivando-se de responsabilizar os graúdos da empresa e de revelar detalhes até hoje ocultos sobre sua atuação durante a ditadura é uma estratégia que não combina com aquele que se tornou o lema do jornalismo independente: a luz do sol é o melhor desinfetante.
Marina Amaral. Diretora executiva da Agência Pública.