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Perspectivas Futuras e Oportunidades para os Serviços Ancilares e as Baterias de Íons de Lítio no Brasil
Por FRANCISCO VICTER
redacao@jb.com.br
Publicado em 01/09/2023 às 17:50
O Brasil, em dezembro de 2022, tinha 65,2% da sua geração de energia vinda de usinas hidrelétricas, de acordo com dados do Balanço Energético Nacional da EPE. E esse percentual é ainda maior no caso da prestação dos “serviços ancilares”, que são todos os serviços que podem ser desempenhados por um gerador de energia além da venda de energia em si.
Segundo o ONS, próximo de 100% dos serviços ancilares prestados no país vem das hidrelétricas, e a gama de serviços previstos na REN 697/2015 (Estabelece os procedimentos para prestação e remuneração de serviços ancilares por centrais geradoras de energia elétrica integradas ao Sistema Interligado Nacional) é abaixo da média internacional, e só foi atualizado recentemente com a REN 1030/2022, cuja aplicação ainda não se consolidou.
E por que devemos nos preocupar com isso? Simples: reflete no preço da energia, e, futuramente, na segurança energética do país (leia-se apagão).
Crescem cada vez mais as usinas eólicas e solares, e com elas, os problemas relacionados à sua sazonalidade e intermitência. Ambas juntas já representavam 13,1% de matriz elétrica brasileira no ano de 2022. E só no primeiro trimestre de 2023, 90% da expansão da matriz elétrica do país foi na forma de solar ou eólica. Isso significa que em um eventual momento noturno, com média de pouco vento e baixa chuva no país, o sistema deverá despachar energia de alguma fonte geradora alternativa para evitar
uma interrupção perigosa e indesejável, diante da diferença entre oferta e demanda energética instalada com capacidade de fornecimento regular e confiável.
A princípio, essa atividade seria adequada para as hidrelétricas, cuja capacidade instalada no Brasil é de 109.229 MW. Esse é o máximo de potência que todas as hidrelétricas do país conseguem gerar simultaneamente, e está acima do pico histórico de carga do país, 86.799 MW. Além disso, o consumo nacional foi de 66.020 MWmed no ano de 2021, e a energia natural afluente (a quantidade de água adicional que irá abastecer todo o sistema a cada ano) tem uma média histórica de longo prazo de 72.000 MWmed.
Na teoria, isso significa que, caso todos os reservatórios estivessem completos e a média histórica se repetisse, o país teria o equivalente ao seu consumo médio em energia hidrelétrica gerada. Assim, para aplicações envolvendo reserva de capacidade por longos períodos, o Brasil já está bem-posicionado para o longo prazo.
Contudo, a segurança na potência não é uma certeza: é preciso considerar que as principais geradoras do país não estão próximas aos centros de consumo, e que a quantidade de geração hidrelétrica em cada subsistema não é exatamente proporcional ao seu consumo local, dependendo, portanto, do intercâmbio, o que reduz a eficiência dessas usinas para a manutenção do torque sincronizante. Nesse mês de agosto, um problema pontual em um regulador de tensão fez com que o Nordeste, que exporta energia para os outros subsistemas, fosse isolado, causando um apagão que chegou a atingir 27% do país.
Nesse cenário, existe uma solução que tende a ser muito mais barata do que contratar energia adicional. Melhor do que construir mais torres eólicas, é “estocar o vento”; e isso é possível.
Aí que entram os sistemas de armazenamento, abreviado como SAEs. Esses sistemas possuem diferentes meios de funcionamento, seja com o armazenamento físico, térmico, elétrico ou químico. De certa forma, até as próprias hidrelétricas atuam como armazenadoras. E dentre esses meios, têm se destacado recentemente as baterias de íons de lítio.
Isso tudo ocorreu porque o crescimento na demanda por veículos elétricos induziu uma melhora significativa nas tecnologias de bateria, que na última década chegaram a baratear 17% ao ano por 10 anos. E até 2040, a expectativa é que os custos atuais sejam reduzidos em mais 50%.
No exterior, a instalação de plantas de bateria em larga escala é um mercado que cresceu em cerca de 100% em 2019 e em 200% 2020, mantendo uma tendência extremamente relevante. E é importante destacar a redução de custo dessas tecnologias de bateria, com previsão de redução ainda maior (50%) até o fim da década.
Só que há um problema: essa tecnologia é tão nova que simplesmente não há nenhuma legislação no Brasil que trate dela especificamente como uma possibilidade para o setor elétrico.
Diferente das hidrelétricas, as baterias (cujos módulos são mantidos em containers) se dão como uma solução simples que pode ser instalada em qualquer nodo de potencial fragilidade. Usando a expressão de um engenheiro eletricista sênior, “é mais fácil abrir uma porta empurrando pela maçaneta do que pela fechadura”.
A EPE, no seu Plano Decenal 2031, definiu que com as taxas de crescimento atuais ocorrerá violação crescente dos critérios de potência no SIN a partir de 2024. Em outras palavras, a menos que haja uma dispendiosa sobre contratação de energia (como está sendo feito hoje), esse risco só irá aumentar.
Assim, na medida em que esse percentual de geração intermitente cresce, é preciso de criar ferramentas para garantir o fornecimento consistente de energia em todo o país. Para esse tipo de problema, existem os chamados “serviços ancilares” citados na introdução.
Nesse cenário, os SAEs de íons de lítio se apresentam como uma importante alternativa a esse problema. No caso nacional, foram identificadas sete atividades que, hoje, incorrem em custo ao operador, aos geradores ou aos consumidores, e que poderiam ser, eventualmente, atendidas pelas alternativas de uso de baterias ou outros SAEs:
1 - Serviços necessários ao funcionamento constante do sistema:
1a – Regulação de Frequência: Como a energia elétrica não pode ser armazenada, há a necessidade de um equilíbrio constante entre geração e consumo. Flutuações grandes na frequência danificam equipamentos conectados e reduzem o tempo de vida da infraestrutura, podendo até mesmo eventualmente causar um colapso da rede. Geralmente este serviço é dividido em várias categorias, como regulação primária, secundária e terciária, sendo a diferença o tempo e duração da resposta. Da maneira como é realizado atualmente, gera custo de oportunidade por demandar parte da
energia do gerador.
1b - Acompanhamento da Carga: Serviço responsável por balancear as oscilações diárias da carga, não as pequenas diferenças que determinam variações na frequência, mas as flutuações típicas do comportamento diário da carga no sistema, como o aumento do consumo nas horas de ponta. Isso é intensificado em mercados com geração intermitente. Considerando sua previsibilidade, deveria ser idealmente executado por hidrelétricas.
1c - Controle da Tensão (reativos): Mantêm a tensão dentro dos limites estabelecidos e compensa os requerimentos de potência reativa dos sistemas. Uma queda na tensão é muito similar a uma queda de fase: com redução na luminosidade das lâmpadas e o aumento imprevisto da corrente em máquinas, além de riscos de sobrecarga e parada na rede. Atualmente incorre em custo aos consumidores, com
geradores e compensadores que regulam a potência reativa. Ideal para sistemas de baterias próximos aos consumidores.
2 – Manutenção da consistência e segurança
2a – Reserva Girante: É a folga de geração que está conectada ao sistema e pode ser suprida em um curto espaço de tempo (até 10 min). Ela precisa estar em prontidão contínua para responder a qualquer perda significativa na geração ou queda de alguma linha de transmissão. Manter essa folga na sua capacidade máxima faz com que um gerador não esteja gerando, o que tem seu custo de oportunidade. Para curtos intervalos de tempo, nenhuma forma de geração dependente de turbina ultrapassa a velocidade de acionamento de uma bateria.
2b – Reserva Não Girante: Similar à reserva girante, mas não está conectada ao sistema, possuindo tempo de resposta maior. Mesmo assim, pode ser iniciada e fornecer energia em um espaço de tempo relativamente curto. Idealmente deveria ser realizada por hidrelétricas.
2c – Reserva Suplementar: É a chamada “reserva da reserva”. São geradores que substituem as outras reservas caso não consigam entrar em ação, em uma emergência.
2d - Black Start: É a habilidade de um gerador entrar em funcionamento mesmo quando o sistema não estiver fornecendo energia, em uma situação de parada total. Atualmente, isso implicaria em custo de capital com a aquisição e manutenção em equipamentos específicos a estes serviços. Nesse caso, as baterias podem fornecer energia para um projeto interligado entrar em operação.
Também podemos ressaltar os serviços de arbitragem e peak-shaving, que são aplicáveis ao mercado brasileiro, porém, dada a sua natureza, não precisam de nenhuma regulamentação adicional. Atualmente, há milhares de minigeradores a diesel que cumprem uma função similar para consumidores que buscam fugir da tarifa no horário de ponta.
Todos os serviços da lista acima podem ser realizados por baterias de íons de lítio, mas atualmente são as térmicas e as hidrelétricas que prestam estes serviços, compulsoriamente. E na maioria das vezes elas atuam com remuneração nenhuma ou abaixo do seu custo de acionamento. O que ocorre é que há um aumento do custo de manutenção das usinas utilizadas para modular a carga, pois maior flexibilidade implica em também maior desgaste de equipamento, além do custo das constantes interrupções
e reinícios da geração.
Esses são só alguns dos custos e problemas adicionais que surgem por depender das termoelétricas e das hidrelétricas para realizar esse tipo de serviço. Em última instância, o mais barato sempre será o melhor, e sistemas voltados especificamente ao armazenamento se colocam como uma alternativa vocacionado para responder a esses problemas no futuro.
Para viabilizar essa implementação, que reduzirá no longo termo o preço da energia no Brasil e aumentará a segurança da oferta, a grande dificuldade do presente é a monetização que os investidores precisam fazer em sistemas armazenamento e baterias, devido à falta de organização legal e à ausência de alocação justa dos benefícios do armazenamento entre as partes interessadas. Afinal de contas, por mais que um sistema seja benéfico, ele jamais será construído enquanto não houver uma sinalização de preços compatível.
Muitas vezes, pode haver uma armadilha “daquilo que se vê, e daquilo que não se vê”, onde arranjos atuais podem ser funcionais, mas outros arranjos atualmente não monetizados trazem um benefício ainda maior para o sistema, e se tornam viáveis a partir do momento em que seu benefício é precificado. É preciso entender se não seria mais econômico ao operador criar leilões específicos para serviços ancilares ao contrário de impor possíveis ineficiências aos consumidores e geradores.
Neste momento, existem alguns desafios que devem ser enfrentados antes que as baterias de íons de lítio possam ser amplamente implementadas no contexto estudado:
1. Aumento na precisão do método de cálculo do PLD, o que pode ser feito tanto com melhoras nos softwares usados pela CCEE quanto possivelmente reduzindo a antecedência com que os preços são anunciados. Além disso, é preciso estudar a possibilidade de melhor ratear os encargos com futuras ampliações de potência do sistema, de maneira a menor prejudicar os consumidores que não consomem na ponta;
2. Estudos para a precificação da TUST e da TUSD em função da hora, de maneira a ratear mais justamente os custos de ampliação dos sistemas de distribuição e transmissão;
3. Expansão das políticas que compatibilizam o horário da demanda com o preço da energia no mercado cativo, como a tarifa branca. Compatibilização dos créditos dados pelas distribuidoras à geração distribuída em função do horário de injeção;
4. A consolidação prática dos softwares para gestão das baterias, de modo que cada operador não dependa de tecnologia proprietária para tomar decisões sobre carga ou descarga de seu banco. A CCEE pode ter um papel de protagonismo nisso;
5. A criação de um marco regulatório brasileiro para SAEs, com a formalização de mecanismos financeiros que estejam relacionados aos benefícios reais que uma bateria pode proporcionar à rede (serviços ancilares, e possível contratação em leilões de potência);
6. Simplificação tributária para baterias de lítio-íon (na ordem de 74%, enquanto uma turbina a gás paga 34%), compatibilizando com os incentivos dados a outras tecnologias de geração, especialmente considerando a sua importância para a transformação energética do país.
Enquanto as seis questões levantadas não forem mitigadas, as perspectivas para baterias estarão principalmente em plantas distribuídas para autoconsumo residencial e comercial (devido à sua expectativa de redução de preço).
Algumas empresas já estão fazendo estudos e se preparando para o futuro em que essas políticas serão aplicadas, como a Natural Energia, com quem tenho desenvolvido trabalhos em relação ao tema, e que já se aprofundou bastante em relação a soluções de armazenamento que possam ser integradas à matriz nacional. Nessa mesma linha, é fundamental lembrar que a ANEEL está se preparando para publicar uma consulta pública com propostas de regulação sobre o tema ainda em 2023.
Com o crescimento da base renovável, a pressão sobre o consumidor na ponta aumentará. Ao mesmo tempo que isso acontece, as previsões indicam que haverá uma queda ainda maior nos preços das baterias. Em um contexto em que a incerteza hídrica persiste (com a previsão para risco de potência a partir de 2024), e a dependência nessa única forma de armazenamento passa a ser vista como um risco, não há dúvida de que os sistemas de lítio-íon terão oportunidade para uma expansão relevante no Brasil, ao mesmo tempo em que pavimentam o caminho futuro para a continuidade da matriz elétrica verde.
Francisco Victer é Engenheiro de Produção pela Politécnica da UFRJ, Mestrando em Economia pela FGV e Pesquisador Associado da FGV Energia. E-mail: franciscovicter@yahoo.com.br