ARTIGOS

Cultura, memória e a preservação do Ó do Borogodó

Por LÍDICE LEÃO
lidicele@hotmail.com

Publicado em 20/09/2023 às 17:48

Alterado em 20/09/2023 às 17:48

Quem conhece samba e conhece São Paulo, já pisou no Ó do Borogodó. É o chão, o símbolo e o território da música de qualidade brasileira. Território forjado ao ritmo da cultura e da identidade do país, com toda a força da sua ancestralidade. No chão e nas paredes do “Ó” – como é chamado carinhosamente pelos amigos mais próximos – memória e história se misturam ao cimento e aos tijolos e, há mais de 20 anos, fortalecem as estruturas da casa.

Mas o Ó do Borogodó corre perigo. O imóvel está para ser vendido e os proprietários querem que o inquilino de duas décadas deixe o local. E como não há possibilidade de negociação, a sua fundadora, Stefânia Gola, luta agora pelo reconhecimento do Ó do Borogodó como Patrimônio Cultural de São Paulo.

Podem ser enquadrados na chamada Zona Especial de Proteção Cultural – ZEPEC - as “porções de território de interesse público relacionado ao seu uso ou atividades desenvolvidas, de valor afetivo, simbólico, histórico, memorial, paisagístico e artístico. Sua proteção é necessária à manutenção da identidade e memória da cidade, de seus habitantes e seus modos de vida. Para estes casos, o instrumento do tombamento da edificação nunca foi suficiente, por isso criou-se a ZEPEC”. Está no texto da Lei de Zoneamento de São Paulo.

Ora, o Ó do Borogodó já faz parte da história de toda a música genuinamente brasileira produzida nos últimos 22 anos. Fabiana Cozza e Dona Iná passaram pelas suas rodas. Railídia e Fernando Szegeri enchem o espaço de ritmo, política e sofisticação. Além de mais de setenta músicos, que complementam o requinte artístico que já virou marca da casa. E no centro de todas as rodas, está uma mulher: Stefânia Gola, a Stê, sinônimo de força e resistência cultural. Não é a primeira batalha que ela encara pela permanência do Ó do Borogodó. Durante a pandemia, liderou a campanha #FicaÓ, quando a casa precisou fechar as portas no período mais grave de transmissão da covid-19. Agora, mais uma vez, não recua pela preservação do espaço que se tornou referência e incubadora da música brasileira.

O bom combate pelo reconhecimento do Ó do Borogodó como Patrimônio Cultural de São Paulo é uma luta do samba, do choro, das raízes e do respeito à história da cidade. A escritora Lauren Elkin, que discorre sobre mulheres que buscam o seu espaço nos territórios, em seu livro Flâneuse, publicado pela editora Fósforo, cita Marshall Bermann, filósofo marxista, em um ensaio que ele escreveu sobre a ruína urbana. A frase faz lembrar o momento atravessado pelo Ó do Borogodó e pela cultura paulistana: “uma cidade é uma tentativa de certa imortalidade coletiva. Morremos, mas esperamos que as formas e estruturas de nossa cidade continuem a viver”. O imóvel onde o Ó vive, pulsa e cria há mais de 20 anos, já tem enraizada no seu chão a imortalidade do samba tocado ali. Nas suas paredes, letras e versos respiram em meio aos tijolos rústicos. Que as formas e estruturas do Ó do Borogodó continuem a viver no mesmo chão em que foi criado e fez brotar cultura, política, diálogos, afetos. Que o Ó do Borogodó seja reconhecido como Patrimônio Cultural de São Paulo.


Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.

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