11 de setembro: memória

Por MARIA CLARA BINGEMER

Houve um outro 11 de setembro antes de 2001, quando do ataque às Torres Gêmeas. Mais antigo e mais ao sul. Corria o ano de 1973 e a situação política no Chile presidido por Salvador Allende era sacudida por ventos ameaçadores. No dia 11 de setembro o palácio presidencial foi bombardeado, invadido e o presidente, que se recusou a renunciar, morreria antes de acabar o dia. Os militares tomaram o poder e Augusto Pinochet iniciou a ditadura que duraria até 1990.

Antes, Allende pronunciou um último discurso transmitido pela Radio Magallanes. Suas palavras ressoam ainda neste Chile que hoje rememora os 50 anos desses eventos. Traído e sem alternativas, o presidente se dirigiu ao povo e aos trabalhadores. Deplora a traição dos mesmos que na véspera se comportavam como falsamente fiéis e leais a seu governo. Pretendia convocar um plebiscito que votaria uma nova constituição para o país. Os militares chefiados por Pinochet anteciparam o golpe que já planejavam para que o presidente não pudesse anunciar sua convocação.

A sombra da ditadura abateu-se sobre o país que há apenas mil dias elegera democraticamente o chefe da nação. Durante os 16 anos que durou o regime de exceção, quase 4 mil chilenos foram mortos e desaparecidos de suas casas, afastados para sempre do convívio de suas famílias sem explicações. Contam-se em 38 mil os presos e torturados. O Chile viveu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina.

Naquele tempo, há 50 anos atrás, o Brasil já se encontrava em regime de exceção desde 1964 com a intervenção militar que depôs o presidente João Goulart. Três anos mais tarde, em 1976, a presidenta Maria Estela Martínez de Perón era deposta na Argentina inaugurando um período de terror e perseguição recentemente recordados no filme indicado ao Oscar: 1985. A ditadura predominava no cone sul da América Latina.

O discurso de Allende pronunciado no já submetido Palacio de La Moneda, no entanto, não é atravessado pelo ódio e o rancor. Nele se pode perceber um tom de esperança com relação ao povo, apesar da traição dos que deveriam defender a democracia. Dirige-se aos chilenos afirmando a esperança no futuro: “...poderão subjugar-nos, mas não se detêm os processos sociais nem com o crime...nem com a força. A história é nossa e os povos a constroem. “

Comprovariam suas palavras todos os focos de corajosa resistência que se formaram apesar do terror instaurado pela polícia que perseguia e torturava. A corajosa Igreja Chilena em sua Vicaría de Solidaridad instituída pelo Papa Paulo VI a pedido do cardeal Silva Enríquez, prestava incansável atenção às vítimas que procuravam escapar do arbítrio, encaminhando muitos a embaixadas de onde poderiam sair do país e assistindo-os de diversas maneiras. O mesmo fez a nossa brasileira CNBB presidida por Dom Aloísio Lorscheiter que através da Caritas ajudava brasileiros e outros latino-americanos aqui chegados a fugir rumo à Europa.

A profecia de Allende se cumpria também com outros fatos que pouco a pouco desmascaravam as mentiras da ditadura. Entre elas está o cemitério clandestino encontrado no deserto de Atacama e por longo tempo escavado pelo grupo de mulheres de Calama em busca de restos de desaparecidos. O belíssimo filme de Patricio Guzman, Nostalgia da luz, traz comoventes depoimentos destas chilenas que jogavam flores para o alto, em liturgia celebrada na ausência de túmulos para os mortos.

Foi uma mulher igualmente que abriu as portas para a descoberta dos sinistros voos da morte. Marta Ugarte, secretaria de educação do governo Allende, teve seu corpo encontrado na praia de Las Ballenas a 182 quilômetros de Santiago com marcas de violações, torturas e toda sorte de violências. O mar devolveu-a à praia e a partir daí começou-se a descobrir a existência dos aviões que atiravam presos políticos ao mar.

Allende termina seu discurso proclamando que tem fé no Chile e em seu destino: “Outros homens superarão este momento cinzento e amargo, onde a traição pretende impor-se...Sigam em frente, sabendo que muito mais cedo que tarde, novamente se abrirão as grandes alamedas pelas quais passará o homem livre para construir uma sociedade melhor. “

A voz de Victor Jara e de tantos outros, calados pela opressão e a força bruta, sirva de melodia a estas palavras em nosso continente de ainda frágeis instituições democráticas em meio à memória deste macabro aniversário.