Armênios, Judeus e o Direito

Por ADHEMAR BAHADIAN

Poucas semanas atrás, o mundo assistiu a limpeza étnica contra armênios. Muito antes do holocausto, os armênios foram objeto de um genocídio até hoje não reconhecido pela comunidade internacional.

Sucessivos governos turcos, impediram a mais do que necessária reparação, ou pelo menos, o reconhecimento da tentativa de eliminar o primeiro povo cristão da história. A geopolítica falou mais alto, apesar da influente e laboriosa diáspora armênia nos Estados Unidos da América.

Não pretendo fazer aqui uma análise dos impasses entre o Direito Internacional e o Poder ou a força do poder e a fragilidade do Direito. É terreno particularmente minado nesta hora e pretendo a ele voltar em futuro não muito remoto.

O fato é que essa perplexidade ou descompasso entre o Poder e o Direito é percebido claramente pelos povos. Ainda outro dia, ao acompanhar pela televisão os eventos dramáticos na faixa de Gaza, assisti uma senhora visivelmente arrasada pela perspectiva de se ver sem casa, sem país e sem segurança alguma, queixar-se que a preocupação com o judaísmo, com o cristianismo com Maomé e Alá deixava de fora a humanidade, numa clara e direta alusão à ineficácia do Direito humanitário.

Não deixa de ser uma coincidência auspiciosa que os eventos criminosos no Oriente Médio ocorram na presidência de turno do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, cúpula do sistema de segurança coletiva surgido depois da 2ª Guerra Mundial. Por mais que haja muita literatura em torno da chamada “cordialidade brasileira” não há como ignorar que somos um país em que palestinos, judeus, armênios, turcos, alemães, italianos e japoneses, dentre tantas outras nacionalidades, vivam aqui em harmonia.

Dificilmente um país da dimensão geográfica e populacional como o nosso poderia defender sem pré-condições a abertura de corredores para a retirada de nacionais de terceiros países involuntariamente retidos nas áreas em litígio ou eventualmente no raio de destruição das forças em combate.

Tanto isto é verdade que o Brasil deu imediatamente início a um primoroso movimento diplomático para a retirada de brasileiros. Na ação combinada dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa a discrição igualou a competência, exemplo da visão humanística de Lula identificada com os anseios profundos do povo brasileiro, onde judeus e armênios, palestinos e alemães dividem alegremente os espaços públicos de diversão, de culto e de cozinha. Somos assim e assim permaneceremos.

Chega a parecer ingenuamente infantil e pateticamente regressivo que alguns comentaristas mais comprometidos com a ideologia do que com a veracidade dos fatos pretendam chamar de fracasso as tentativas da Diplomacia brasileira de buscar a chancela dos cinco grandes do Conselho de Segurança para uma trégua nos ataques militares para permitir a retirada de nacionais de terceiros países da Faixa de Gaza.

Se há fracasso deve-se ao mecanismo pesado do Conselho de Segurança que não adaptou a seu processo decisório os mesmos objetivos inscritos em múltiplos instrumentos dos órgãos das Nações Unidas como a Convenção dos Direitos Humanos, o Direito Humanitário e, o mais recente de todos, os relativos à proteção do meio-ambiente e o combate a desastres climáticos.

Esta constatação é que nos deveria preocupar e não a ciumeira da politicagem que atribui a Lula uma atracão incontida por um suposto Prêmio Nobel da Paz. As lições que o Brasil deve tirar dos atuais mesquinhos interesses em jogo têm que ver com os riscos de misturar o que é de Deus com o que é de Cesar, como nos advertiu o próprio Cristo, um palestino.

Infelizmente, aqui no Brasil, um país de sincretismo religioso, faz alguns anos que, a título de coibir direitos civis, se pretende enjaular o sentimento humano em regras que pertencem muito mais à fé religiosa. Este o maior risco que estamos a correr: o de, em nome de deuses, abrir a porta a vampiros, sanguessugas do trabalho espoliativo, profetas do desespero, arcanjos decaídos a nos lembrar a frase não compreendida de Sartre de que “o inferno são os outros".

 

Adhemar Bahadian é embaixador aposentado