ARTIGOS
'Que haja luz'. Sobre a invisibilidade do trabalho feminino
Por MARIA CLARA BINGEMER
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Publicado em 07/11/2023 às 12:39
Alterado em 08/11/2023 às 10:43
“Que haja luz” disse o Criador, pronunciando a Palavra sobre o caos primitivo sobre o qual pairava a Ruah – o sopro e espírito da vida. E luz houve que iluminou a obra que se seguiria e que culminaria na criação do Adão– o humano feito do barro em cujas narinas foi soprado o espírito divino – e que saiu das mãos do Criador com as diferenças inscritas em sua identidade: macho e fêmea.
Os seres humanos começaram a cultivar e transformar o mundo criado. Ou seja, a trabalhar. E dividiram esse trabalho. O homem – Adão - caçaria e pescaria para alimentar os seus e faria a guerra para defender a pátria. A mulher – Eva – ficaria em casa e cuidaria dos filhos que procriaria em seu ventre e alimentaria com seus seios túrgidos de leite. Quando crescessem esses que um dia foram pequenos, a mãe continuaria a cuidá-los, cozinhando a comida a ser repartida entre os membros da família, lavando as roupas que Adão e os filhos usassem, limpando a casa onde todos morassem. Também cuidaria de seus pais e também dos sogros quando envelhecessem e não pudessem mais valer-se por si mesmos. Se alguém adoecesse, ali estaria Eva cuidando de todos em todo momento.
Durante muito tempo assim foram entendidas as identidades humanas e a divisão de suas funções na sociedade: o homem trabalha e ocupa o espaço público, enquanto a mulher se restringe ao privado e cuida da casa e da família. As coisas, porém, começaram a mudar para a mulher que, no século passado, necessitou ou decidiu por vontade própria sair do espaço privado, entrar no mercado de trabalho e, portanto, dividir o espaço público com o homem. Assim, muitas mulheres buscaram um trabalho remunerado, acederam a diferentes carreiras e profissões, ou entraram no mercado informal. Deixaram o recinto doméstico e integraram a busca por um emprego que lhes garantisse a sobrevivência e contribuísse para a renda familiar.
Porém, de volta à casa após um dia em uma atividade profissional por vezes muito cansativa e exigente, deviam essas mulheres fazer dupla jornada e continuar a trabalhar, realizando as tarefas de antes e de sempre: cozinhar, dar de comer, lavar, passar e limpar, mesmo após passar o dia inteiro trabalhando. A divisão do trabalho entre homem e mulher continuou. Apenas a mulher acumulou mais uma jornada laboral àquela que já exercia. E, enquanto ela trabalhava e assumia espaços e obrigações profissionais, o homem pelo contrário, não assumia nem dividia com ela as tarefas domésticas.
Essa situação não foi, no entanto, reconhecida. Todo o esforço e o cuidado exercidos pela mulher, seja profissional e remunerado no mercado de trabalho, seja informal ou não remunerado, em casa cuidando da família e dos a ela agregados não tem sido na verdade considerado como trabalho. Trata-se de algo invisibilizado e desconsiderado pela sociedade como um todo, que seguiu crendo e afirmando que a divisão desigual do trabalho e a consequente invisibilidade da mulher que o exerce em qualquer âmbito seria algo normal, adequado à natureza e à diferença entre os gêneros.
Hoje vivemos tempos de novos paradigmas. A atitude diante do mundo e da vida baseada na conquista, na eficácia e no êxito a qualquer preço gerou uma crise planetária e antropológica. As novas gerações já não se sentem representadas por esses valores. Emerge então uma nova valorização do cuidado e se descobre que na verdade as mulheres já o vivem como paradigma em suas vidas há muito tempo. É necessário que o trabalho que exercem nas fronteiras do espaço doméstico seja visibilizado e valorizado. Que haja luz sobre essa realidade de tantas mulheres que constitui um dos pilares da sociedade e mesmo da humanidade.
E assim o tema da redação do ENEM que levou mais de 4 milhões de jovens a realizarem as provas que poderá levá-los às universidades versou sobre essa questão com este título: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Os desafios são muitos. Mas é bom e positivo ver que os futuros universitários e jovens profissionais deste país estão pensando e escrevendo sobre eles.
Que haja luz sobre a invisibilidade feminina não apenas no campo profissional, mas em todas as dimensões da vida. É mais do que tempo de pôr em prática o sonho do Criador que criou o humano macho e fêmea para uma vocação e um destino de ajuda, parceria e igualdade. Que haja luz e que o que era escondido se torne visível e brilhe para inspirar as novas gerações que desejam e merecem um futuro melhor.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Experiência de Deus na Contemporaneidade: entre o viver e o contar” (Editora Paulinas), entre outros livros.