A retomada da cota de telas no Brasil

Por CAROLINA SAAD e CAROL BASSIN

Em janeiro de 2024, o presidente da República, Lula da Silva, sancionou duas leis que retornam com a iniciativa conhecida como “Cota de Tela”. O setor do audiovisual comemorou, mas será que o público em geral entende o impacto desta determinação legislativa?

Inicialmente é importante entendermos o que determina a legislação aplicável. Enquanto a Lei nº 14.814 [1] obriga que empresas exibidoras, isto é, salas ou complexos de exibição com intuito comercial, possuam em suas programações obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem até 2033, a Lei nº 14.815 [2] prorroga até 2038 a cota obrigatória para produções brasileiras na TV paga (serviço em que o assinante paga periodicamente para ter acesso a determinados canais). Além disso, estabelece que até 2043 as empresas de distribuição de vídeo doméstico deverão ter um percentual anual, fixado em regulamento, de obras brasileiras cinematográficas e videofonográficas entre os seus títulos, ficando obrigadas a lançá-las comercialmente.

O mercado de vídeo doméstico engloba a 'locação' e 'venda' de produtos audiovisuais, predominantemente de forma digital por meio da internet. Geralmente, as transações ocorrem a crédito [3], sendo as plataformas de streaming os exemplos mais comuns e utilizados atualmente.

Este último prazo se mostra especialmente instigante, pois reacende a discussão acerca da regulação de plataformas de streaming e sistemas de Video on Demand (VOD).

Na prática, tais determinações legislativas tornam obrigatória a presença do audiovisual brasileiro nas diferentes mídias e veículos de comunicação. Aqui é salutar apontar a importância do Estado, responsável constitucional pela garantia do acesso a bens culturais, utilizar a ferramenta da lei para regular um setor que, no contexto sociopolítico do Brasil, desempenha um duplo papel: de um lado configura uma cadeia produtiva geradora de renda para milhares de profissionais e, de outro, resulta em produto cultural brasileiro disponível para a sociedade.

A intervenção legislativa, nesse sentido, busca sedimentar espaços para a distribuição e comercialização de obras brasileiras e tornar a indústria cinematográfica brasileira autossustentável, por incentivar tanto a sua produção quanto o estabelecimento de locais comerciais para a exibição das obras finalizadas.

Engana-se, contudo, quem acredita que esta iniciativa é recente. A primeira atitude estatal com o objetivo de promover a produção audiovisual nacional e a exibição de obras brasileiras ocorreu em 1932, sob o comando de Getúlio Vargas, através do Decreto nº 21.240 [4]. O ato normativo procurou consolidar o cinema enquanto agente cultural e educacional ao criar incentivos fiscais para empreendimentos que buscavam a produção cinematográfica nacional e obrigar a exibição de filmes nacionais educativos em salas comerciais [5]. Desde então, novos modelos foram testados por diferentes governos.

A obrigatoriedade da cota de telas foi introduzida de forma semelhante a que vemos hoje em 2001, quando o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, emitiu a Medida Provisória 2228-1, também conhecida como “Lei Ancine”, por ter criado a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e estabelecido princípios gerais da Política Nacional do Cinema, resultando na criação da cota de tela para as salas de cinema baseada na quantidade de longas transmitidos e de dias em que filmes brasileiros possuem espaço na tela. Assim, a cota é baseada tanto pela variedade de conteúdo quanto pelo tempo que ficam em cartaz.


O prazo original estipulado pela Medida Provisória 2228-1 para a cota de tela nos cinemas chegou ao término em setembro de 2021, após duas décadas de vigência. A falta de regulamentação surgiu no contexto de um enfraquecimento e esvaziamento das políticas culturais, evidenciado a partir de 2019, quando o decreto presidencial, que deveria ser publicado anualmente para definir os critérios da cota de tela, deixou de ser editado, criando uma lacuna prejudicial e injustificável para a produção cultural brasileira e colocando em risco a própria subsistência do setor. Aqui, vale lembrar que o artigo 55 da referida Medida Provisória é explícito ao estabelecer a necessidade de um decreto presidencial anual para regular as medidas de aferição de cumprimento da cota de tela, que será fiscalizada pela Ancine.

O vazio legislativo é um dos principais fatores apontados por especialistas para explicar como, em 2019, 80% das salas de cinema brasileiras exibiram um único filme estrangeiro: “Vingadores: Ultimato” [6]. O longa norte-americano é apontado, ainda, por ter prejudicado a permanência de sessões do filme brasileiro “De Pernas pro Ar 3”, estrelado por Ingrid Guimarães, e que vinha tendo uma ótima performance, ultrapassando um milhão de espectadores até sua retirada [7].

Em 2019, o valor adicionado pela indústria audiovisual brasileira ao PIB ultrapassava R$ 27,5 bilhões, segundo dados publicados pela Ancine. Isso mostra que o Brasil é mais do que um país consumidor; é também um país criador, desenvolvedor e produtor de cultura e legados.

Medidas como a cota de tela buscam assegurar variedade, diversidade, competição equilibrada e efetiva permanência em exibição de longas-metragens nacionais. Entendido esse contexto, podemos celebrar com um sopro de alívio e retorno à normalidade a recente sanção presidencial.


Carolina Saad, advogada voltada para a área do direito ao entretenimento e contratos.
Carol Bassin, advogada especializada em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral.

 

Notas

[1] Lei nº 14.814/2024. Disponível aqui. Acesso em: 22 jan. 2024.