Sobre maternidade e catástrofe climática
O Dia das Mães se aproxima e fica difícil escrever coisas leves e alegres diante da tragédia que se abateu sobre o estado do Rio Grande do Sul. Nunca se viu coisa igual por aqui e mesmo as enchentes que já vivenciamos parecem diminuir de tamanho e gravidade diante dessa cascata de água que despenca em torrente do céu e vira enxurrada de barro arrastando tudo que vê pela frente.
São cidades inteiras submersas, centenas de pessoas desabrigadas, alojadas em moradias de emergência. Animais perdidos se abrigam sobre os telhados ou vagam à procura dos donos. Um personagem se faz presente e agrava o panorama: o medo. Olhar para cima dá medo da água que pode vir, que dizem que virá novamente e cairá torrencial aprofundando a desgraça. Olhar para baixo também dá medo. Vê-se a água que vai engolindo lentamente tudo. Sobre, sobe. E continua subindo, subindo, ameaçadoramente como um relógio sem ponteiros que marca o crescimento do desespero diante do socorro que não chega.
A garbosa e valente terra gaúcha geme sob a catástrofe. Em alguns municípios já é a segunda ou terceira enchente. Segundo ou terceiro recomeçar. Segunda ou terceira experiência de ver a morte descer do céu ou subir dos rios e ter que encontrar outro lugar, outra altura, outra situação. E tentar salvar as coisas e desistir porque só se consegue, com sorte, salvar as vidas.
Como falar da maternidade em meio a tudo isso?
Dois rostos maternos me chamam a atenção nas imagens veiculadas pela mídia. Uma é de uma mãe de cabelos grisalhos que grava um vídeo no celular de alguém para tranquilizar a filha que mora longe. Em meio à desolação de haver perdido a casa e tudo que tinha, ela diz à filha que está bem, assim como o marido. Mas perderam tudo. Se salvaram mas tudo o que tinham foi embora. Exceção feita para algumas roupas acabadas de lavar e que conseguiu resgatar do alto do armário. E ainda – emocionante detalhe – as fotos da confirmação da filha que guardou dentro de um saco e levou consigo. Em meio ao atordoamento do desastre, onde tudo foi perdido, a maior preocupação da mãe é tranquilizar a filha. E na hora do desespero de sair deixando para trás tudo que constituía seu lugar, sua vida, sua segurança ainda se lembra de resgatar as fotos da confirmação.
A confirmação, dentro da Igreja Católica, é o sacramento da iniciação plena e adulta na vida cristã. O fiel é ungido com o óleo do Crisma e recebe o Espírito Santo que o confirma na fé. As fotos tinham certamente um significado muito forte para a mãe e a filha. Essa vida que jorrou sobre a filha no dia de sua Confirmação foram a força da mãe no momento de salvar sua vida. Serão certamente um tesouro que a filha guardará sempre consigo. A mãe as enrolou em um saco e levou o precioso fardo debaixo de seu braço. Sacramento que agora tem maior significado: a vida que venceu a morte em situação limite que a mãe viveu. Graça que a filha poderá tocar e sentir quando voltar a encontrar a mãe e o pai, depois que as águas assim o permitirem. Beleza da fé e do amor de uma mãe que em meio à angústia pela qual passou pensa antes de tudo na filha que um dia gerou e que a Igreja batizou e confirmou. O Espírito da Vida se faz presente nesta saudação de uma mulher simples que é mãe e não rompe a corrente da qual é protagonista.
A outra imagem é a de uma jovem mulher, grávida a termo que foi resgatada em trabalho de parto. No helicóptero as contrações se intensificaram e o bebê nasceu. Não me recordo mais em que jornal televisivo vi a imagem de mãe e filho naquela situação A mãe, jovem e bonita, olhava embevecida para o bebê como se não existisse mais nada no mundo. Enchente, água subindo, risco de perder a casa, medo, pânico, nada parecia existir ali em volta do milagre do nascimento daquela criança. Jamais esquecerei a expressão de felicidade tranquila e plena daquela jovem mãe olhando para o filho. Entrevistada , ela disse ao microfone que não sabia como descrever a situação pela qual passara. Mas que era um milagre que tudo houvesse acabado bem.
Às mães que passaram pelas enchentes do Rio Grande do Sul - tantas meu Deus – dedicamos nossa crônica para este Dia das Mães de 2024. Vocês são o sinal, o sacramento vivo da vida mais forte que a morte. São a garantia de que, apesar da humanidade maltratar tanto a Mãe Terra, a vida vai reencontrar o caminho e vai persistir e vai viver. Afinal, Eva no livro do Genesis, é nome que é verbo. E significa a que vive, a vivente. Todas descendemos dela e mesmo em meio à morte, nosso corpo dá testemunho do milagre que é a vida. Feliz Dia das Mães bem ao sul do Brasil!
Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio