ARTIGOS

Luz no túnel do tempo

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 04/08/2024 às 08:31

Alterado em 04/08/2024 às 08:31

Há quem diga que o fim está próximo. Com a reeleição de Trump, as guerras se espraiam como nódoa de petróleo em mar azul. O “sertão vira mar e o mar vira sertão”. Queima-se o Pantanal, aprofunda-se a criminalidade mais do que ecológica no Amazonas. O Oriente Médio ribomba os tambores de guerra. A Venezuela importa para a América do Sul as botas de Putin.

Eis aí a versão do medo a justificar um salto certo no incerto. O som e a fúria de manadas em Gaza, onde se aperfeiçoam os requintes da selvageria humana. E se petrifica o pavor.

Este sentimento de desespero joga a favor da irracionalidade. O desentimento é moeda de troca em nossas transações mais comezinhas com amigos, vizinhos, compatriotas.

Os extremismos de Direita ou Esquerda se identificam como irmãos siameses na pregação do ódio ao outro seja por razões políticas ou religiosas. A tolerância ao contraponto é taxada de covardia e a ameaça física é a linguagem cotidiana dos que se sentem desmoralizados por não serem atendidos em suas visões autoritárias sobre a ordem social.

Assim é na faixa de Gaza. Assim também foi na invasão do Iraque por Bush filho. E os exemplos sobre a falência da ordem internacional se multiplicam. A ONU, sobretudo, cada vez mais paralisada pelo poder de veto das superpotências e a incapacidade da comunidade internacional de criar novos mecanismos de entendimento que não tenham como substrato o estoque de armas nucleares.

A rigor e ao contrário de muitos, inclusive de colegas com quem tenho o prazer de discordar há longo tempo, não antecipo uma saída catastrófica para a crise ou crises atuais. O plural é de rigor quando sabemos que estamos diante de cortes profundos em nossa visão do mundo.

A meu modesto ver, estamos atravessando uma época em que se esboroam todos os dogmas políticos que atravessaram o século XIX, se confrontaram no século XX, e se tornam cada vez mais cinzas a crepitar de tempos em tempos no século XXI.

O ideário socialista tal como concebido por Marx e implementado por Lenin e Stalin, hoje com o expansionismo imperial de Putin, não mais exerce a atração que possuía antes da dissolução da União Soviética. Da mesma forma, o capitalismo apregoado como melhor forma de sistema econômico após a segunda guerra mundial, tal como defendido pelos Estados Unidos da América, encontrou seu desafio histórico com o neoliberalismo e o globalismo, ambos imprimidos como verdades inquestionáveis por Reagan e Thatcher nos Estados Unidos da América e no Reino Unido.

Passados cinquenta anos das ideologias socialistas e capitalistas, o mundo se encontra profundamente desigual em que a pobreza, o analfabetismo, a fome, as doenças e a criminalidade assustam cidades tanto no mundo capitalista quanto socialista.

O neoliberalismo tornou-se particularmente pernicioso ao associar a ordem política e em especial a democracia a uma cruzada libertária em que se confundem mecanismos claramente espoliativos e de servidão econômica com os ideais de liberdade e sufrágio democrático, como se fossem mecanismos indissociáveis como efetivamente não são.

Compreende-se assim porque a rejeição, por correntes politicas democráticas, do neoliberalismo predador é confundida com a rejeição automática dos mecanismos democráticos. Os regimes autárquicos de extrema direita são bom exemplo, como nos mostra Orban, e também de extrema esquerda como os recentes episódios na Venezuela.

Ao se aceitar que esta bipolaridade extremista só nos leva ao conflito perigosamente armado, é do interesse primordial de todas as forças progressistas do mundo que se promova com urgência possível a correção de rumos na política internacional e que se adotem formas construtivas de convivência internacional.

E aqui devo registrar que a política externa brasileira de Lula baseia-se no que há de mais tradicional nela, sobretudo na igualdade jurídica dos Estados, defendida por Rui Barbosa desde os primeiros anos da República.

Não há como confundir princípios sólidos do Direito Internacional com manhas e manobrinhas “ad-hoc” como já vimos serem defendidas por Trump em seu primeiro mandato e anunciadas como passíveis de endurecimento num eventual segundo mandato.

A política externa brasileira, me parece, está entrando em rio de piranhas não por vedetismo ou incongruência, mas porque o que está em jogo não carece de “machismos diplomáticos” e atinge nossa segurança e de nossa região, bem como de nossos interesses mais vitais.

Vejo por aí muito Chanceler de improviso a deitar falação que Celso Amorim pisou na bola ou que Mauro Vieira deveria ter dito isto e aquilo. Nestas horas me lembro do Garrincha e sua inesquecível pergunta: “combinaram com os russos”? Hoje temos que combinar com os russos, com os americanos e os chineses e, de quebra,fingir que “los hermanos” nos adoram.

Tenho o maior respeito pelos jornalistas especializados e sobretudo pelos professores universitários especializados em politica internacional.

Mas, às vezes, me assusta, por ter vivido dez anos no dia a dia das Nações Unidas, onde as negociações se prolongam por semanas para produzir um texto aceitável por mais de cem países, como jornalistas e professores são unânimes em desprezar os diplomatas, como se fossem idiotas engomadinhos, incapazes de distinguir o sentido de palavras como “consenso" e “ desacato”.

Kamala vai ganhar com o apoio da mulher americana. Consenso ou Desacato?

 

*Embaixador aposentado

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