Axelle e Celine: Olimpíada declinada no feminino

Por MARIA CLARA BINGEMER

Desde o último dia 26 de julho, o mundo divide sua atenção entre as violências sem fim do Oriente Médio e da Venezuela e os Jogos Olímpicos de Paris 2024. As Olimpíadas encontram sua origem na Grécia Clássica e a realização dos jogos ocorria na cidade de Olímpia, para onde pessoas de outras cidades se encaminhavam a fim de participarem e assistirem as competições. Neste ano, Olímpia é a Cidade Luz, Paris, capital da França.

Muitas especulações precederam os jogos, sobre o clima, sobre o tempo, sobre os riscos de realizar os jogos devido à situação de violência e permanente ameaça que pesa sobre as cidades europeias com a proximidade geográfica da Ucrânia em guerra e do Oriente Médio.

Porém, no dia 26 de julho, sob chuva contínua e persistente, o mundo pôde ver a belíssima abertura dos jogos. Toda a riqueza da cultura francesa, com o gênio de sua inteligência e imaginação aliado ao bom gosto da língua nativa e a elegância das imagens proporcionaram a todos os que assistiam, de perto ou de longe, momentos inesquecíveis.

Seria impossível comentar todos os elementos dessa abertura, seja os polêmicos (com a reinterpretação do banquete dionisíaco que foi confundido por muitos com a Última Ceia, e acusado de desrespeito à religião), seja os estéticos (como o mascarado que recordava Arsene Lupin percorrendo os telhados da capital parisiense). Quero aqui ressaltar a presença marcante de beleza e força de duas mulheres que protagonizaram momentos chave da abertura.

A primeira é Axelle Saint-Cirel, jovem mezzo soprano de 29 anos, parisiense de nascimento e filha de pais nativos do arquipélago de Guadeloupe, território francês de ultramar, situado ao sul do Caribe. Havia um silêncio expectante na multidão que se aglomerava às margens do Sena quando no alto do Grand Palais, – edifício monumental onde acontecem grandes exposições artísticas – ouviu-se uma voz tão forte quanto suave. Combinação rara e difícil de explicar o tom dessa voz que, no entanto, conjugava esses dois qualificativos em total harmonia e deslumbrante beleza. As palavras eram da “Marseillaise”, o hino nacional francês, que fluía como um rio cristalino e caudaloso da boca daquela belíssima mulher, envolvida com um vestido drapeado tricolor nas cores da bandeira francesa. Em sua mão direita, segurava o próprio pavilhão nacional. E cantava o hino com suavidade e paixão provocando um sentimento de admiração e encantamento.

O hino francês é conhecido por ser aguerrido, falar de combate, sangue, inimigos, vitórias e derrotas. Trata-se de uma conclamação à luta, à beligerância. No entanto, na voz de Axelle Saint-Cirel, as mesmas palavras conduzidas pela mesma belíssima melodia transmitiam outra mensagem: doçura, amor, encantamento. A potência daquela voz que modulava todos os tons possíveis com uma perfeição impressionante derramava na escuta de todos o hino nacional do país-sede dos Jogos Olímpicos através da beleza da mulher que o cantava e suas origens ultramarinas. Quanto caminho andaram Axelle e seus ascendentes até chegar ao topo do Grand Palais? Certamente não foi fácil o percurso para que ela pudesse brilhar como estrela naquele entardecer parisiense chuvoso. Ali estava a história de uma trajetória de vida e a arte plena na voz de uma bela e jovem mulher mestiça de pais nascidos em uma colônia francesa.

A outra que destaco foi a responsável pelo momento musical de clausura da cerimônia de abertura. Vestida de branco, extremamente elegante, Céline Dion, cantora canadense de 56 anos, nascida em Charlemagne, Quebec, famosíssima no mundo inteiro cantou a bela canção de Edith Piaf, Hino ao Amor (Hymne à l'amour). Que Céline Dion cante e se destaque em qualquer espetáculo não seria surpresa para ninguém. Seu talento é reconhecido e celebrado há décadas por diversas brilhantes e irretocáveis performances em vários espetáculos e situações.

O que impressionou a todos foi ver Celine Dion na plenitude de sua forma artística neste momento em que vive. Há quatro anos é sabido que a artista sofre de uma doença grave, degenerativa e debilitante que a faz experimentar rigidez de músculos, espasmos dolorosos e limitações físicas de todo tipo. Sua voz não conseguia projetar-se como antes, devido ao fato de seus músculos não responderem aos estímulos do cérebro. A cantora teve que anunciar ao mundo a notícia terrível que teria que afastar-se por um tempo dos palcos e dos microfones.

Porém em nenhum momento essa artista pensou em desistir. Em um documentário sobre sua vida, ela diz, no auge da dor e dos espasmos: “Eu não vou parar. Se não puder correr, vou andar. Se não puder andar, vou me arrastar. Mas não vou parar.” E o que se viu na noite parisiense, fechando o belo espetáculo de abertura dos Jogos de 2024 foi uma Céline Dion no auge do seu talento e potência vocal, cantando a peça musical de Piaf com todos os seus agudos e semitons, projetando sua voz com uma força e exatidão impressionante. O domínio do microfone, a força da voz de Céline que recusara o suporte do “play back”, impressionou a todos e arrancou uma verdadeira ovação da assistência. Aos que ouviam de longe pela televisão como eu, provocou lágrimas de emoção. O hino ao amor de Edith Piaf conhecia agora nova versão na interpretação impecável da canadense que deu todo o seu talento e capacidade musical, proclamando a vitória do amor sobre todas as limitações.

Duas mulheres, duas histórias de resiliência e superação. Uma filha de pais originários das colônias francesas. Outra lutando contra uma doença agressiva e dolorosa. Em ambas, a arte, a beleza, o talento e a disciplina construíram um caminho que tornou possíveis os dois momentos maiores e culminantes dos Jogos de Paris 2024. Essa Olimpíada definitivamente alargou sua declinação no feminino. O desempenho de tantas atletas de várias nacionalidades confirma o que Axelle e Celine anunciaram em suas apresentações.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados” (Editora PUC-Rio/Vozes), entre outros livros.