Uma volta olímpica

Por ADHEMAR BAHADIAN

Talvez dentro de alguns anos, as Olimpíadas de Paris serão historicamente associadas a fatos marcantes de nossa história política.

Não sei como os analistas e historiadores do futuro se referirão a 2024, mas certamente alusões do tipo “o ano em que quase entramos numa nova Idade Média” serão corriqueiras. Imagino as mais ousados ou mais bombásticas metáforas como nos filmes de Stanley Kubrick – ou um Apocalipse Now, de Francis For Coppola.

Pena Kubrick já não estar vivo para com seus efeitos hipnóticos e também perversos - Laranja Mecânica - iluminar cinemas de, digamos, 2050.

As Olimpíadas e sua controvertida, porém arrebatadora, abertura, onde a tela de fundo de uma Paris chuvosa, já era em si uma metáfora corcunda que uma catedral de Notre Dame em reparos não nos deixava esquecer onde começa a ficção onde acaba a realidade.

Assim como parecia ficção a alegria de atletas deslizando pelo Sena em franco e juvenil contentamento.

Como se as guerras horripilantes no cotidiano de Gaza ou da Ucrânia não fossem em si atestado de quão longe andamos de uma civilização humana.

Tão distante dos ideais de harmonia e competição ali recordados, embora nos pavoneemos como se herdeiros fôssemos de Platão ou de Sócrates.

Olimpíadas cuja imagem maior impressa em nossa memória há de ser a de Gabriel Medina.

Herói grego a pairar subitamente sobre os mares numa enfática afirmação da inteligência e da habilidade humanas contra a fúria terrível da onda hercúlea, cavalgada por astúcia e vigor.

E também recordaremos sempre nossa judoca de ouro, Beatriz Sousa, monumental na sua emoção de uma vitória sobre o estigma e os preconceitos que o sexo e a cor de gerações brasileiras como ela suportaram, finalmente liberados em lágrimas de orgulho e reafirmação.

Isto sem falar de Ana Patricia e Duda que encontraram ouro nas areias do vôlei de praia e o resultado da final de futebol feminino, qualquer que venha a ser, apenas confirmará a fibra e a garra da mulher brasileira. Machistas que se cuidem.

Mas, convenhamos, o que permite identificar 2024 como ano seminal na história deste até hoje sofrível século XXI é constatar um movimento inesperado na geopolítica internacional com a renúncia patriótica de Biden à corrida eleitoral.

Ao sair da campanha acusado de mentalmente incapaz, Biden entrou na história dos Estados Unidos pela porta da lucidez cívica.

Na hora em que seu país se vê na iminência de se transformar num Estado-Pária.

Tais e tantas são as ameaças de Trump à Democracia, ao Estado de Direito e aos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade que informaram a revolução francesa. Inspiração sutil igualmente da revolução americana.

2024 marca a linha divisória entre a retomada de uma civilização efetivamente progressista e a barbárie.

Não se trata de minha opinião pessoal. A cada dia surgem estudos e análises de grandes centros internacionais de pensamento político a apontar a fraude em que embarcamos nos últimos 50 anos quando um projeto político se transformou numa fraude econômica empobrecedora, com o nome pomposo de neoliberalismo, cujos resultados desagregadores são mais do que evidentes.

Nem se diga que os centros de análise geopolítica sejam de ideologia de esquerda, a menos que se queira chamar de esquerdista um centro como o Instituto Roosevelt e de comunista um economista americano ganhador do Nobel de economia como Stiglitz.

Stiglitz, cujos livros estão traduzidos no Brasil, acaba de publicar no Instituto Roosevelt - fácil e gratuitamente disponível na internet, no site do Instituto - uma arrasadora análise do neoliberalismo em que demonstra o equívoco de deixar desregulados os mercados com as consequências de destruição da classe média americana. E de muitas outras.

Stiglitz assinala ser a politica do Banco Central americano - seguida e copiada como artigo de fé - equivocada por tentar conter a inflação com aumento de taxas de juros, tema do nosso cotidiano nos jornais brasileiros, alguns deles identificados com as políticas ultra-neoliberais.

Poucas vezes se tornou tão óbvia a opção política que se aproxima nos Estados Unidos da América. E também para a grande maioria dos países europeus, onde se instala um extremismo xenófobo, como se o imigrante fosse o gafanhoto das culturas mundo afora.

O ódio ao imigrante, se não contido, nos levará a uma instabilidade em que até um eventual turista brasileiro em Nova Yorque poderá ter humilhantes encontros com a polícia de Trump.

O que nos anima nesta hora, muito mais do que as Olimpíadas é ver que Trump sentiu o peso dos democratas americanos que transformaram Kamala Harris num meteoro político a riscar o céu nublado da sociedade americana.

Tim Walz, mais do que um escudeiro fiel, é a voz da classe média americana, homem que sabe dizer nas bochechas de Trump, a diferença entre um homem e um trapo.

Basta ver que Trump, como sempre temeu, está nu. E chega a ser constrangedor, senão patético, suas observações à imprensa quando recentemente fingiu não saber se Kamala era negra ou indiana. De cinismo em cinismo, em novembro Trump saberá.

Trata-se apenas de uma mulher. Digna. Defensora da lei.

Dois atributos que podem levar Trump à prisão.


XXXXX


EM TEMPO. Será na próxima segunda-feira, dia 12, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na PUC, às 18h, a missa em memória de Georges Lamaziere, um dos melhores embaixadores da jovem geração do Itamaraty. Diplomata de grande valor profissional e homem de caráter, deixa imensa saudade em todos que o conheceram.

2. A cada dia que passa se compreende a arquitetura da posição brasileira em relação à Venezuela. Chutar o pau da barraca é fácil, mas apenas torna mais perigoso o já instável equilíbrio de forças com nossos vizinhos. Nada poderia nos interessar menos do que arroubos quixotescos nesta hora. Confundir geopolítica com ideologia é o caminho mais rápido para impasses insolúveis. Infelizmente, o mundo real exige e impõe solucões negociadas.

3. A tentativa de aplicar soluções unilaterais ignorando o Direito Internacional, como faz os Estados Unidos de Trump, apenas aumenta os riscos de conflitos intratáveis como estamos a ver infelizmente com grande frequência.

4. Aliás, com as “datavenias" de praxe, quem imita quem: Trump imita Maduro ou vice-versa. Afinal, invadir o Capitólio é considerado um ato patriótico por Trump. Ou será que me equivoco?



Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado