ARTIGOS
Como falar de Deus um ano depois
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 07/10/2024 às 10:06
Alterado em 07/10/2024 às 10:06
Aniversários macabros não deveriam ser celebrados. Nem mesmo relembrados. Porém a memória é ineludível quando se trata de vida e morte. Mais ainda quando se trata de um passado que segue presente e que compromete todo um futuro. Futuro de gerações, de pessoas reais. Futuro da própria esperança que parece distanciar-se cada vez mais na medida em que as notícias chegam, piores e mais dolorosas.
Um ano se passou desde 7 de outubro de 2023 e o horror continua. Espalhou-se para além das cidades fronteiriças a Gaza e do sul de Israel para a Cisjordânia e para o Líbano e o norte de Israel. Tomou conta de toda a região. A Síria, o Iraque, o Irã e o Iêmen também estão em chamas. Inúmeros mortos e feridos. Muitos sem-teto e famintos. Tantos desesperados e perdidos. Tanta destruição. O ódio, a raiva e o desejo interminável de vingança ainda não foram saciados.
Diante de nossos olhos, o sombrio saldo de sempre: sangue, destruição, sofrimento, vítimas e mais vítimas, sobretudo crianças e pessoas vulneráveis das vulnerabilidades tantas que compõem o cenário da vida humana neste já avançado século XXI. O ódio domina as discussões e envenena as relações. Sejam as diplomáticas ou as pessoais. E predominando sobre as palavras que não conseguem fazer-se ouvir, o único discurso audível são as bombas, as balas, as explosões e os gritos: de medo, de terror, de indignação, de perplexidade.
Discute-se se a guerra é justa ou não; quem tem razão e quem não tem; quais implicações tem esta ou aquela tomada de posição; que organismos internacionais devem ou não intervir. Uma guerra pode até ser desencadeada e manter-se por longo tempo vigente por causas justas. Mas isto não a torna justa. Só pode haver justiça quando houver disposição de limitar o desejo sem limites e os próprios impulsos nascidos de ódio e rancor.
A violência não é somente instrumento de opressão social ou de agressão militar. É também um método de ação que parece às vezes necessário para defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. Ela pode, com efeito, ser empregada a serviço de causas justas. Mas isso não a converte em justa. Se parece necessária para combater a injustiça, para defender o que é defensável e denunciar o não tolerável, a violência não permanece menos uma violência que machuca e fere a humanidade, tanto daquele que a sofre como daquele que a exerce.
Ao aproximar-se o aniversário daquele terrível 7 de outubro, não me vêm à cabeça palavras outras senão as pronunciadas por Hans Jonas após a Segunda Guerra Mundial. “Como falar de Deus depois de Auschwitz”? Como prosseguir com nosso discurso sobre um Deus todo poderoso e que é amor infinito após o genocídio que fez a história da humanidade girar sobre seus gonzos? Como falar de esperança e vida se o olhar só se abre sobre desgraça, vazio e destruição?
Agora, um ano depois, a pergunta que me parece ressoar é parecida. Como falar de Deus um ano depois dos atentados de 7 de outubro? Como falar de um Deus que vem sendo incessantemente invocado pelas vítimas e seus parentes, pelos reféns, pelas mulheres violadas, pelas crianças assassinadas e que parece calar-se? Como falar se o único ruído que se escuta é o da sede por poder que vai aumentando o espectro da destruição e da morte?
E, no entanto, é preciso persistir. Talvez não esperando que Deus se pronuncie com clareza sobre os fatos que amedrontam. Mas não cessando de falar a Deus, de dirigir-se a ele, de rezar enfim. Como saber se Deus ouve? A oração é na verdade, muitas vezes, uma luta para encontrar palavras que ainda possam traçar um horizonte de esperança em meio ao desespero. Há que buscar palavras de fé, palavras que expressem a Deus sonhos de justiça e paz, liberdade e igualdade para todos, em vez de gritos de raiva, gemidos de repulsa e o silêncio sombrio da depressão.
Se desse falar a Deus emergir uma única palavra que chame ao cessar fogo, ao diálogo, ao entendimento que parece impossível, a um passo sequer na direção da paz tão distante e diminuída, a esperança voltará ao vocabulário humano, do qual parece ausente e inalcançável. Que a passagem desse tão triste aniversário possa ser marcada por uma esperança que se delineia no horizonte enquanto desejo de que a humanidade não repita incessante e cegamente os erros de sua história e encontre caminhos novos para abrir um futuro de vida.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Rocco, 2007)