ARTIGOS
Que fazer? A ressaca das esquerdas e os desafios para 2026
Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO
Publicado em 30/10/2024 às 11:49
Alterado em 30/10/2024 às 11:49
As forças de progressistas acordaram de ressaca na última segunda-feira. Se as eleições são a festa da democracia, quem se esbaldou foram os conservadores, embriagados pelo doce champanhe da vitória. O saldo das eleições municipais não deixa dúvida: se o quinteto progressista formado por PT, PDT, PSB, PV e PCdoB elegeu cerca de 745 prefeitos, só o PSD de Gilberto Kassab elegeu 887, cinco dos quais em capitais.
Quer mais? O velho MDB fez 853 prefeitos, o PP fez 747, o União fez 538 e o PL outros 516. O PSOL não elegeu um mísero prefeitinho. Para piorar, em números aproximados, as forças progressistas venceram em somente 13,1% dos municípios. Lendo de trás para frente, significa que 86,9% dos municípios brasileiros escolheram forças políticas de centro e de direita, inclusive São Paulo e Rio de Janeiro.
Já nas eleições gerais de 2022, se por um lado a vitória de Lula contra um ensandecido Bolsonaro, deu certo alento às esquerdas na luta contra o fascismo histórico, por outro as urnas sufragaram um Congresso Nacional conservador, que vende caro a tal governabilidade. Bolsonaro, quando presidente, fez do Congresso um pote de ouro, dono de um poder mesquinho, que só funciona na base da chantagem, da barganha, do “toma lá, dá cá”. Assim, mais do que uma vitória das forças progressistas, a conquista da presidência em 2022 deve muito ao carisma pessoal do Lula, um mito de carne e osso, cuja biografia é um dos capítulos mais importantes da história política do Brasil.
Mas, como diriam os antigos, “uma andorinha não faz verão”. Lula está envelhecendo, na idade e no discurso. Mais do que isso, o PT envelheceu. A fulgurante legenda que irrompeu no cenário político dos anos 1980 articulando sindicatos e intelectuais para redefinir os rumos do país, atingiu seu ápice entre 2003 e 2011, quando, em dois mandatos sucessivos, Lula retirou o Brasil do mapa da fome e incorporou milhões de pessoas ao mínimo existencial da cidadania, quer pelo acesso à educação, quer pelos programas sociais.
Todavia, após três décadas de neoliberalismo, as esquerdas já não dialogam com o povo. Identidárias, perderam suas bases na Igreja Católica, sem conquistar os evangélicos. Assistencialistas, não conseguem se comunicar com a juventude empreendedora, precarizada, cujo “corre” se nutre da ilusão da prosperidade rápida, do ganho imediato, sem patrão e sem Estado, sem amarras e sem direitos, do puro suco de individualismo. Ademais, burocratizadas, as esquerdas perderam contato com a realidade das ruas. Já não estão mais nos botecos, nas praças, nas periferias. Não sabem como lidar com os trabalhadores “pejotizados”, com a turma dos aplicativos, das vendas “on-line”, dos viciados em “bets”, dos que vivem no fio da navalha da exclusão social, da insegurança alimentar e do controle territorial das narcomilícias. Esses foram relegados pelas esquerdas, cujos dirigentes prosperaram, viraram burgueses, que, no controle de suas máquinas partidárias, tolheram novas lideranças.
Em meio ao rescaldo da acachapante derrota, as forças progressistas já debatem seu futuro. A parada é dura, em especial para 2026. Afinal, se por um lado as esquerdas perderam a si e para si, por outro também perderam para o jogo sujo das emendas de bancada, do fundo partidário, do fisiologismo barato, amorfo, sem projeto para o país, sem outro sentido senão a rapina dos cofres públicos, o exercício acrítico do poder. Será que o eleitor do PL sabe que o Bolsa Família que alimenta seus filhos é oriundo das esquerdas? Que sua moradia vem do Minha Casa, Minha Vida, que o SUS é uma conquista das forças progressistas e que sua sonhada aposentadoria também? Pois é...
Nesta canção do futuro, por um lado, haverá grupos que apostarão na radicalização do discurso, no retorno aos movimentos sociais, nas lutas identitárias, nos enfraquecidos sindicatos, enfim, num passado idealizado, quando, autênticas, as esquerdas criticavam o “sistema”, mantinham sua coerência ideológica, mas não governavam. Outros, por certo, apostarão na institucionalização dos partidos, nas disputas pelos poderes Executivo e Legislativo, na ampliação das alianças, em caminhar para o centro, em jogar o jogo, em conquistar o poder. O fato é que, sem as forças progressistas, o país corre o risco de definhar sua pálida consciência social, caminhando para uma distopia neoliberal. As esquerdas são importantes, não irão desapaecer, pois, enquanto houver capitalismo, haverá desigualdade, haverá luta. Mas, nesse momento, elas estão acuadas e postas numa encruzilhada. Atônitas, se colocam a velha questão leninista: que fazer?
Lier Pires Ferreira PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/Uerj.
Renata Medeiros de Araújo. Mestre em Ciência Política. Advogada.