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A Ilusão e a Servidão (10) ou A Saúde Sequestrada - Final
Por ADHEMAR BAHADIAN
Publicado em 10/11/2024 às 09:10
Alterado em 10/11/2024 às 09:10
Em meados dos anos 70 do século passado, no âmbito das negociações econômicas internacionais, um dos temas de maior interesse para os países em desenvolvimento era a transferência de tecnologia em termos e condições compatíveis com as necessidades desses Estados, em fase de industrialização.
Os órgãos multilaterais, principalmente aqueles sediados em Genebra - instituições econômicas como o GATT e a UNCTAD - se ocupavam de pelo menos três ambiciosas negociações: 1) a elaboração de um Código de Conduta para Empresas Transnacionais, 2) Código de Conduta para Transferência de Tecnologia e 3) Revisão da Convenção de Paris para a Propriedade Intelectual.
Cabe lembrar que naquela quadra do século 20, estávamos passando pelo fim dos chamados anos gloriosos - que se estende do fim da guerra em 1945 até 1970 - quando se inicia uma nova ideologia econômica, o neoliberalismo.
Recordemos que no início dos anos 60 - em grande parte por força dos estudos da CEPAL (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina) - os países em desenvolvimento e os países recém-libertados do jugo colonial reclamavam uma nova ordem econômica internacional na qual o comércio internacional se libertasse de mecanismos trazidos desde o período colonial, sempre desequilibrados em favor dos países desenvolvidos.
Na metade dos anos 70 do século passado começa, portanto, a se defrontar nas negociações internacionais esta polaridade entre concepções sobre a nova ordem econômica, com consequências que chegam aos nossos dias.
Ressurge, hoje, uma tendência regressiva, com denominações nacionais diversas, dentre as quais, a mais popularizada é o MAGA (Make American Great Again), bandeira de Donald Trump nas recentes eleições americanas.
Clara e inequívoca ressurgência do mais primitivo dos nacionalismos, aceno cúmplice aos totalitarismos, e pá de cal na globalização, durante anos apregoada como a nova teoria de um mundo melhor.
Na prática, voltamos ao “big stick” embora certamente sem o "soft talking”. (Em português claro: “falar manso, mostrando o porrete”).
Este quadro cronológico nos permite, creio, ver a essência do problema a nos afligir como se estivéssemos diante de forças desconhecidas, diabólicas ou divinas.
Na realidade, estamos diante dos mesmos problemas do pós-guerra, combinados com a ascensão recente de um novo aspirante a hegemônico vindo da Ásia.
O que é paradoxal, a meu ver, é a ironia de que a estratégia internacional dos Estados Unidos da América e dos chamados países do G-7, na medida em que se recusaram a abrir mão de alguns mecanismos abusivos do comércio internacional contribuiu, em muito, para o agravamento das disparidades, ao invés de reduzi-las.
Aliviados, aqueles abusos poderiam ter levado a um sistema comercial ocidental equânime, mas, optou-se por seguir o mandamento agressivo da acumulação imediatista de lucro a qualquer custo.
Na acelerada e atabalhoada busca de redução de salários, da supressão de garantia dos direitos trabalhistas históricos e da eliminação dos controles de abuso econômico, desviou-se a inteligência tecnológica do sistema econômico ocidental para o eixo asiático
Foi a época áurea em que se imaginou que a China poderia se limitar a reproduzir desenhos industriais, sem absorver-lhes a tecnologia. Erro histórico.
Hoje, a China é o principal desafio para os Estados Unidos da América na concorrência tecnológica.
A tal ponto que Trump não esconde sua intenção de reduzir, com vistas a eliminar, o comércio ocidental com a China.
Esta tendência, se vier a agravar-se e, sobretudo, se for ideologizada como uma política democrática de interesse de todos, e não apenas dos interesses americanos, poderá nos levar a um impasse impensável.
O que mais me assusta é a tendência a piorar cada vez mais o desentendimento internacional e a retardar-se a construção de um sistema econômico efetivamente menos injusto.
Nas negociações econômicas sobre tecnologia nos anos 70, assisti a uma das mais abjetas manobras internacionais, liderada pelos Estados Unidos e alguns outros países desenvolvidos, nas questões relacionadas com patentes farmacêuticas.
Os países em desenvolvimento procuravam atenuar os efeitos nocivos do monopólio abusivo concedido por patentes a permanecerem em vigor por mais de 20 anos. Às vezes, quase o dobro, através de patentes adicionais, ditas de melhoria.
Hoje já é fato mais do que público que a criação do Acordo Trips (Acordo sobre propriedade intelectual relacionada ao comércio) na OMC (Organização Mundial do Comércio) foi fruto de uma articulação entre os lobbies da Indústria Farmacêutica e o governo dos Estados Unidos que tornou a proteção patentária uma excrescência jurídica.
Uma manobra que procurou penalizar a pirataria tecnológica - o que é salutar - e aprofundou os mecanismos de virtuais monopólios - o que é imoral - e, na área de saúde pública, mais do que imoral, fatal.
Talvez, você que me lê, estará se perguntando porque nós aceitamos um acordo com este apetite leonino.
A resposta é simples: os Estados Unidos da América, através de sua Lei de Comércio, tornou obrigatório que os países em desenvolvimento adotassem, como lei nacional de propriedade industrial, os mesmos dispositivos acordados na OMC.
Através da criação de listas de produtos que teriam sua entrada proibida nos Estados Unidos, - listas arbitrárias, muitas delas atingindo empresas de pequeno porte - em poucos meses, exportadores e entidades patronais pressionaram os governos para aceitarem exigências americanas. Uma manobra ardilosa, porém certeira.
E desta forma, nossa lei brasileira passou a proteger patentes farmacêuticas inclusive aquelas que já havia negado anteriormente. E hoje o Brasil remete só em “royalties” dessas patentes a bagatela de 20 bilhões de dólares anuais.
Evidente que contado desta forma que contei parece um disparate. Mas, poderia descrever todas as etapas da negociação e se veria que, mais do que um disparate, foi uma aberração jurídica de uma insolência absurda.
A tal ponto, que os próprios Estados Unidos se veem hoje na encruzilhada dos altos preços dos medicamentos prescritos por receitas médicas. Foi tema de campanha eleitoral presidencial do Partido Democrata. A vitória de Trump, porém, poderá levar ao enrijecimento do Obamacare, sistema de saúde público dos Estados Unidos. E à manutenção crescente da espiral dos altos preços dos medicamentos.
Tenho quase certeza que pressões adicionais virão mais cedo do que se espera. A Diplomacia brasileira certamente terá que se preparar para voltar a ouvir que é antiamericana, esquerdista, nefelibata, ultrapassada e tantos outros adjetivos a tentar fazer da defesa dos direitos da sociedade brasileira uma articulação do mal.
Desde os tempos de Rui Barbosa, e sua coragem em Haia, ao defender a igualdade jurídica dos Estados, hoje libertar a saúde sequestrada do povo poderá levar, como levou em 1964, a fatos históricos lamentáveis e, aqui entre nós, ridículos quando não risíveis, diante de certos axiomas como o de defender as posições norte-americanas como desejáveis e benéficas para o Brasil. Sempre.
Grande parte das ilusões de parcela considerável da elite brasileira é a de pensar que os Estados Unidos da América deveriam fazer um plano Marshall para o Brasil sem conhecer os reais objetivos do plano de reconstrução da Europa pós-guerra. Muito de nossas dificuldades no diálogo com os Estados Unidos é o de confundirmos aquele grande país com o Tio Sam, alegre companheiro do Zé Carioca. Uma caricatura do mundo mágico da Disney e de Hollywood em aliança com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Só cresceremos como Nação, quando nos convencermos de que nosso papel histórico é o de, antes de tudo, crescermos como povo solidário.
E para isto é preciso nos libertarmos de nossos preconceitos, que os temos e muitos. Reler com olhar menos ingênuo a história de nosso país e reestudarmos os meandros de nossa colonização, desde sempre a exigir uma transferência abusiva de nosso ouro e a nos colocar sempre na posição de devedor de uma independência hipotecada e nunca plenamente resgatada. E sobretudo jamais imiscuir crença religiosa, qualquer que ela seja, com os objetivos de segurança e desenvolvimento do país.
O resto não é silêncio. É aceitar a ilusão que nos leva à servidão.
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EM TEMPO: Registro com pesar o falecimento do Embaixador José Botafogo Gonçalves. Nossas condolências à família, em especial, à Embaixatriz Suzana Botafogo cuja sensibilidade e amizade muito apreciamos, minha mulher e eu, ao longo de nossa convivência.
2. O filme “Ainda estou aqui” tem performances notáveis como as de Selton Mello e Fernanda Torres. Mas, os poucos minutos de Fernandona e seu olhar de apatia, transfigurado por um raio de esperança, merece ser guardado em todos os museus de cinema do mundo. Melhor que a leitura de centenas de artigos científicos sobre a devastação da alienação mental. Artigos de Freud inclusive. Me lembrei, ao vê-la em sua estupenda interpretação, do psicanalista Eustachio Portela Nunes, que nos ensinava que, sim, se pode morrer duas vezes, uma pela loucura, outra pela morte física.
3. Recomendo aos interessados nas barbaridades da indústria farmacêutica o livro “O Jardineiro Fiel” de John Le Carré. Leitura obrigatória para os políticos, lobistas e diplomatas ainda em dúvida sobre o melhor caminho a seguir.
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado