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Punhal Verde e Amarelo: militarização e política no Brasil contemporâneo

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Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 20/11/2024 às 19:22

Alterado em 20/11/2024 às 22:41

Enfim Mauro Cid contribuiu para as investigações da Polícia Federal. Até aqui, a delação premiada do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro pouco havia auxiliado a desvendar as entranhas do 8 de janeiro ou revelar os verdadeiros líderes dos acampamentos bolsonaristas que buscavam envolver o Exército em um novo golpe de Estado. Mas parece que o mundo digital sempre deixa rastros e os dispositivos eletrônicos de “Cidão” entregarem o ouro.

Muito além de incitar a retirada de Lula do Planalto, as investigações decorrentes da “Operação Contragolpe”, da PF, revelam que a manobra “Punhal Verde e Amarelo”, planejada por oficiais do alto escalão do Exército, tinha o propósito de matar o presidente Lula, seu vice, Geraldo Alkmin, e o ministro do STF, Alexandre de Moraes. O plano, ao que tudo indica, era do conhecimento de Cid e também contava com a estreita participação do ex-ministro chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, que concorreu à vice-presidência em 2022, na chapa derrotada, encabeçada por Bolsonaro.

Segundo a PF, o principal artífice da conspiração seria o general Mário Fernandes, ex-assessor da presidência. Junto com ele, havia dois membros das Forças Especiais do Exército: o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima e o major Rafael Martins de Oliveira. Junto aos “Kids-Pretos”, como os membros das Forças Especiais são conhecidos, também estariam o major Rodrigo Bezerra de Azevedo, especializado em guerras não convencionais, e o policial federal Wladimir Soares, responsável por repassar ao resto da quadrilha informações sobre a segurança pessoal de Lula e Alkmin.

Não é nova a participação de militares em golpes de Estado no Brasil. Parteiros de uma República sem povo, as forças castrenses derrubaram o Império, sustentaram o Estado Novo, tramaram contra Juscelino e lideraram o golpe de 1964, mergulhando o país em uma ditadura inglória. “Ainda Estou Aqui”, longa-metragem dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, foca justamente as consequências nefastas do autoritarismo sobre a família do ex-deputado Rubens Paiva, inescrupulosamente levado à morte pelo regime, evidenciando que as feridas abertas pela ditadura militar de 1964 ainda estão longe de cicatrizar.

A militarização da política é um fenômeno típico de sociedades com baixo amadurecimento democrático como o Brasil. O conluio da pobreza com a baixa densidade educacional tende a gerar uma flacidez institucional facilmente capturada pelo militarismo, que, frequentemente associado a outros elementos narcísicos como o nacionalismo, o populismo e o autoritarismo, prescreve que as soluções para os problemas da ordem passam necessariamente pelo silenciamento das diferenças. Logo, diante de insatisfações populares ou tensões políticas diversas, a receita autoritária é tamponar a pluralidade de projetos e propostas para o país, suprimindo direitos e garantias.

Além disso, entre nós é frequente a compreensão de que os militares, quase sempre politizados e muitas vezes susceptíveis à cooptação por elites ávidas por rapinar o Estado, exercem certo “poder moderador”. Essa interpretação, igualmente relacionada ao militarismo, hoje é erroneamente defluída do art. 142 da Constituição Federal, segundo o qual os militares, para além da defesa da Pátria contra agressões estrangeiras, também se destinam “(...) à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Portanto, em um cenário de baixa institucionalização relativa, o ideal de subordinação militar ao poder civil é frequentemente suplantado pela noção torpe de que o domínio civil é uma concessão do poder militar. Por isso, muitos militares e muitos civis vêm as forças castrenses como reserva moral diante de um cenário político corrompido por lideranças ineptas. Diante de fatos tidos como inaceitáveis, como seriam, nesta acepção, a “descondenação” de Lula e o sepultamento do lavajatismo, não haveria alternativa que não um golpe militar, restaurador das virtudes supostamente perdidas. O ideal salvacionista, heroico, inerente a uma sociedade militarizada, está presente na vida sociopolítica brasileira, cujas relações civis-militares carecem de amadurecimento.

De todo modo, a trama golpista descoberta pelos federais ainda não está completamente clara. Dentre os fatos ainda eclipsados estão as razões que levaram os insurgentes a abortar a missão, bem como se o então presidente Bolsonaro tinha ciência da manobra. O “Punhal Verde e Amarelo” também expõe o quanto a polarização política esgarça a sociedade brasileira, levando à radicalização, seja de supostos lobos solitários, como o Tiü França, que explodiu diante das câmaras de segurança do STF, seja de profissionais da guerra, como o comando golpista de Mário Fernandes. O amigo leitor já imaginou o rebu que advirá de uma possível prisão de Braga Netto e de Bolsonaro? Pois é...

Enfim, a intentona inadvertidamente revelada por Mauro Cid impõe ao país o desafio de restaurar o império da lei, inclusive negando anistia a golpistas de distintos quilates. Igualmente, impele os Poderes da República a restaurar o mínimo de moralidade política indispensável à ordem democrática, algo em baixa tanto no Executivo, quanto no Legislativo e no Judiciário. Além disso, estabelece a imperiosa tarefa de superar o ideário neoliberal, que, advogando pelo Estado mínimo, parece incapaz de conjugar produção de riqueza com bem-estar. Afinal, sem desenvolvimento socioeconômico, sem virtudes cívicas, na clássica acepção de Montesquieu, a democracia é apenas um ideal oco, sem lastro material.

 

Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/UERJ

Renata Medeiros de Araújo, Mestre em Ciência Política. Advogada

 

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