ARTIGOS
O rei está nu!
Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO
Publicado em 27/11/2024 às 10:48
Alterado em 27/11/2024 às 10:48
O relatório final da Polícia Federal é contundente! Ele faz a radiografia do golpe de Estado que para depor o presidente Lula e reconduzir Bolsonaro ao Planalto. Após dois anos de investigação, para além de nominar militares de alta patente e outras autoridades de Estado, os federais são claros em apontar que Bolsonaro tinha pleno conhecimento dos fatos, inclusive das ações clandestinas e criminosas que seriam praticadas, dentre as quais o assassinato de Lula, Alkmin e Alexandre de Moraes. Em outras palavras, Bolsonaro seria um golpista.
A associação de Bolsonaro a uma trama golpista não é exatamente uma surpresa. Desde os tempos da caserna, o então capitão já tramava contra a ordem estabelecida, quer rompendo o binômio hierarquia e disciplina, quer planejando atentados à bomba. Como bem disse o ex-presidente Geisel, Bolsonaro era um mau militar. Ato contínuo, já como parlamentar do baixo clero, Bolsonaro afirmava sem cerimônia que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” ou “sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção”.
Lamentavelmente, um homem de tão baixo quilate, capaz de celebrar a torpe lembrança do coronel Brilhante Ustra ao se declarar favorável ao impeachment de Dilma, não apenas perpassou três décadas como parlamentar, mas, nos braços de muitos, foi eleito presidente por uma democracia que sempre renegou. Com tamanha castração moral, o resultado não poderia ser outro: golpe de Estado.
Derrotado nas urnas, Bolsonaro foi capaz de alimentar a sanha golpista de militares do mais alto escalão, como Augusto Heleno, Braga Netto e Mário Fernandes, que, por ideal de ofício, deveriam ser disciplinados até os limites da autoaniquilação. Carismático, também arrastou um sem número de coronéis, tenentes-coronéis e outros oficiais, inclusive a vegetação rasteira das forças armadas e da segurança pública. Encantados pela sedução do autoritarismo, também operavam, como peões, milhares de cidadãos brasileiros, muitos dos quais precariamente instalados nos acampamentos golpistas acolhidos à beira de quartéis em diferentes partes do Brasil.
Os porões da ditadura nunca deixaram de operar. Insidiosos, muitos militares não respeitam o Estado Democrático de Direito, nem reconhecem a subordinação do poder militar ao domínio civil. Como aponta o relatório da Polícia Federal, o golpe só não aconteceu na medida em que os comandantes do Exército e da Aeronáutica, legalistas, se recusaram a embarcar numa aventura golpista. Também faltava, no Legislativo, apoio ao golpe. Eleitos, muitos congressistas fisiológicos e corruptos, senhores de parcelas quase infinitas do orçamento público, tinham pouco ou nada a ganhar com o golpe de Estado. Profundos conhecedores da natureza narcísica de Bolsonaro, sabiam que nada podiam esperar do ex-presidente, que, de baixa envergadura moral, frequentemente deixa à descoberto aqueles que já não lhe são mais úteis. Além disso, junto aos parlamentares pairava a memória de 1964, quando muitos políticos que apoiaram o golpe militar, como Carlos Lacerda, ao final foram cassados ou mesmo mortos pelos ratos dos porões.
Alguns detalhes da trama golpista são de eriçar os pelos. Saber que a Marinha do Brasil tinha tanques nas ruas prontos para apoiar o golpe é um tapa na cara do cidadão-contribuinte, que sustenta com o suor dos seus impostos militares golpistas que tramam contra a ordem democrática. Saber que militares de alto galão foram capazes de dizer que “Lula não sobe a rampa” é de uma ousadia atroz, que mostra o quanto a profissionalização das Forças Armadas ainda é uma meta distante. Como se ouve comumente, o militar segue o seu oficial superior, seu comandante direto, seu líder imediato, sem reconhecer a ordem constitucional e o presidente da República como comandante em chefe das Forças Armadas.
Dá agonia de pensar que estivemos por um triz. É triste saber que a democracia tão duramente reconquistada dependeu do juízo cívico de homens como Freire Gomes e Baptista Júnior, que, falíveis como qualquer ser humano, poderiam ter cedido à tentação do absolutismo. Também dá um certo asco ver exposta da covardia de Bolsonaro. Se o ex-capitão tivesse ousado assinar a minuta do golpe, aquela que explodiu nas mãos de Anderson Torres, talvez a história fosse outra.
Mas Bolsonaro é medroso. Ao que tudo indica, não possui firmeza de caráter sequer para liderar um golpe de Estado. Por isso, fugiu para os Estados Unidos, na esperança de que, sem sua liderança direta, outros fizessem o serviço sujo em seu benefício. O quanto de mediocridade e perversão faz alguém sacrificar sua dignidade cívica em favor de um homem como Bolsonaro? Que dimensões da vida política fazem com que o entronizem como um líder triunfante, um pacificador? Nos anos 1830, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen escreveu um conto emblemático, que culminava com a expressão de uma criança: “O rei está nu!”. Bolsonaro, um rei de quase-nada, foi desnudado pelo relatório da Polícia Federal. Está nú, sem as plumas do poder e incapaz de esconder sua face covarde e golpista.
Lier Pires Ferreira, PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/UERJ
Renata Medeiros de Araújo, Mestre em Ciência Política. Advogada.