A Ilusão e a Servidão(9) ou A Nova Desordem Econômica Internacional

Por ADHEMAR BAHADIAN

No final dos anos 70 do século XX, o chamado neoliberalismo se instala como a principal ideologia do sistema econômico internacional.

Os chamados anos gloriosos - período que se inicia com a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial - se encerra com o dueto Jararaca e Ratinho, codinomes de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, com a cantoria desafinada de que a sociedade não existe, acompanhada pelo trombone de vara de Milton Friedman a propagar ser a única obrigação social da empresa capitalista dar lucro a seus acionistas.

Curto e grosso. Reside aí a escoliose vertebral da ordem econômica internacional com as crises financeiras de 2008, no endividamento externo do Brasil, aniquilando uma política de crescimento econômico e de soberania nacional, coordenada por Geisel e Silveira, este último com a política externa do pragmatismo responsável.

Tanto Geisel quanto Silveira tiveram que lidar com um tropismo exagerado em relação ao Destino Manifesto da Política Externa americana, tropismo este que Geisel combateu com o afastamento de seu ministro do Exército, Silvio Frota, líder de um movimento equivocado, contrário tanto à distensão política interna quanto à retomada de nossas relações diplomáticas com a China.

Recordo este ponto para mais uma vez assinalar que, para o negociador brasileiro, fosse ele Diplomata ou não, havia ainda no ar uma certa zona de turbulência em céu azul, forma, como se sabe, muito temida pelos pilotos.

Quem melhor explorava esta atmosfera de transição em que a distensão no Brasil coincidia com as reviravoltas totalitárias no Chile e na Argentina, para ficar na América do Sul, sem aprofundar o que se passava na África, sobretudo nas ex-colônias de Portugal e na Ásia, com a guerra do Vietnam, era os Estados Unidos da América.

Em grande parte preocupado com os movimentos dos países produtores de petróleo, ao criarem a OPEP - que inicialmente levou a uma alta expressiva do preço do barril, em contrapartida à desvalorização do dólar pelo Federal Reserve americano - os Estados Unidos da America intensificaram seus movimentos contra a criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional, que, embora aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, era escoimada como de natureza socialista ou pelo menos anti-capitalista.

Embora a diplomacia americana de Reagan tivesse uma excelente estratégia mercadológica - a começar pela própria figura aparentemente “boa-praça” do presidente, sua embaixadora na ONU, Jeanne Kirkpatrick, não escondia sua estreita aderência a uma diplomacia do poder a fazer do destino manifesto uma sustentação ideológica.

É nesta fase que a diplomacia americana inicia, com a participação privilegiada do Reino Unido, uma sistemática oposição à UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). A UNCTAD auxiliava, com seus estudos, as negociações dos países em desenvolvimento, na tentativa de obter melhores preços em seus produtos de exportação, além de identificar os principais obstáculos à aquisição de tecnologia indispensável ao desenvolvimento.

Dois elementos centrais surgiam nessas negociações. O primeiro deles, defendido pelos países desenvolvidos, decretava que o desenvolvimento econômico seria tão mais rápido e profundo quanto maior fosse a liberdade para a atuação das grandes empresas multinacionais.

“Indevidas” restrições impostas, na remessa de lucros e eventuais controles governamentais, inclusive os vinculados à proteção da concorrência e às leis anti-monopólios nos países hospedeiros das transnacionais deveriam ser suprimidos.

Corolário imediato deste princípio é a eliminação de empresas estatais, acoimadas de ineficientes e protecionistas.

O panorama que descrevo sucintamente coincide com a explosão das crises financeiras e a consequente maior dependência do Brasil de financiamento externo para controlar o pagamento dos juros da dívida externa.

Juros arbitrariamente multiplicados por decisão unilateral dos Estados Unidos da América. Que neste caso, segue fielmente o provérbio brasileiro: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

A política externa brasileira se tensiona em duas dimensões: a primeira delas, na tentativa usual de preservar nossa soberania política e outra, espúria na obrigação de nos ajustarmos às pressões do Tesouro americano e mais especificamente aos bancos internacionais. Área privativa do ministro da Economia.

Como nem sempre coincidem os objetivos de uma e de outra, o negociador brasileiro, principalmente o envolvido em negociações na UNCTAD e nas Nações Unidas, ouvirá, como cansei de ouvir, o tom de deboche dos negociadores americanos com a perguntinha malévola: “Você tem certeza que posso confirmar com o seu ministro da Fazenda”? Belos Tempos.

Esta estratégia se mostrou mais danosa ao Brasil na Rodada Uruguai, quando aceitamos o acordo sobre propriedade intelectual e a leonina proteção às patentes farmacêuticas, com danosas consequências para o acesso brasileiro a medicamentos.

A desculpa aí foi combater a pirataria. Mas, no caso, apenas a troca da perna de pau de um pelo olho tapado de outro.

Ou será a perna de pau de um a engordar o olho gordo de outro? Há quem diga ter sido assalto. Outros, pilhagem.

Os gatinhos angorá ressonam em suas almofadadas e aquecidas interpretações de um Direito Internacional entranhadamente parasitário.

Manco e desequilibrado na equação que supostamente deveria resolver entre o patrimônio privado e a saúde pública.

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Em tempo: aos interessados, informo que discordo em gênero, número e grau com os que afirmam que o pronunciamento do presidente Lula a favor de Kamala Harris tenha sido condenável por ser ele um Chefe de Estado. Ao contrário, se outros chefes de estado se juntassem a Lula, talvez o eleitor americano acordasse para os riscos que a eleição de Trump trará para a simples sobrevivência da racionalidade. E é sempre bom lembrar que as potências nucleares são garantes da paz. Com base nesta doutrina, o Brasil e tantos outros paises assinaram tratados em que renunciam ao direito de ter armas nucleares. A contrapartida do eleitor americano é evitar que uma pessoa com tantos e óbvios sinais de imaturidade emocional possa ter acesso livre ao desencadeamento de uma guerra “acidental”. Lula falou pela vida de todos. Sobretudo agora que Trump sugeriu que alguns militares que dele discordaram foram traidores da pátria e deveriam ser fuzilados. Quem na História falou desta forma?

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado